Lenin – o ditador original?
96 anos após a morte de Lenin, as classes dominantes em nível mundial ainda o ligam aos ditadores mais horríveis
Vladimir Lenin, o principal líder da revolução russa, fez a seguinte observação perspicaz em meados de 1917: “Os grandes revolucionários foram sempre perseguidos durante a vida; a sua doutrina foi sempre alvo do ódio mais feroz, das mais furiosas campanhas de mentiras e difamação por parte das classes dominantes. Mas, depois da sua morte, tenta-se convertê-los em ídolos inofensivos, canonizá-los, por assim dizer, cercar o seu nome de uma auréola de glória, para “consolo” das classes oprimidas para o seu ludíbrio, enquanto se castra a substância do seu ensinamento revolucionário, embotando-lhe o gume, aviltando-o.”. (Estado e Revolução)
Num momento de exaltação, quando as tropas norte-americanas conquistaram Bagdá em 10 de abril de 2003, o Secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, proclamou que “Saddam Hussein ocupa agora o seu legítimo lugar ao lado de Hitler, Stalin, Lenin, Ceausescu no panteão de ditadores fracassados e brutais”. Oitenta anos após a morte de Lenin, as classes dirigentes globalmente ainda o ligam aos ditadores mais horríveis.
Lenin morreu no dia 21 de Janeiro de 1924, há 80 anos, mas já estava gravemente doente e afastado do trabalho político desde o final de 1922. Desde sua morte, porém, as classes dirigentes em nível mundial não fizeram qualquer tentativa de canonização. O seu medo da revolução russa, “os dez dias que abalaram o mundo”, levou-os a continuar com “o ódio mais feroz, das mais furiosas campanhas de mentiras e difamação”. Nunca antes ou depois os capitalistas estiveram tão perto de perder os seus lucros e o seu poder em nível mundial como no período de 1917-20.
As campanhas anti-Lenin são utilizadas para afugentar os trabalhadores e a juventude das ideias e lutas revolucionárias. Para os socialistas de hoje, é, pois, necessário responder às mentiras e calúnias dirigidas contra Lenin e a revolução russa.
A imagem de uma continuidade desde Lenin a Joseph Stalin e a Leonid Brezhnev e Mikhail Gorbachov, é talvez a maior falsificação da história. Publicações como “O Livro Negro do Comunismo: Crimes, Terror, Repressão” – de Stephane Courtois, Nicolas Werth, Jean-Louis Panne, Andrzej Paczkowski, Karel Bartosek, Jean-Louis Margolin (Harvard University Press, 1999) – nada dizem sobre as políticas dos bolcheviques lideradas por Lenin ou sobre as decisões tomadas imediatamente após a revolução de outubro de 1917. Escondem as enormes lutas dos anos 20, iniciadas pelo próprio Lenin, para impedir a ascensão do stalinismo. Não conseguem explicar a guerra civil unilateral que Stalin conduziu na década de 1930 contra qualquer pessoa ligada a Lenin.
Um historiador distinto que diferenciava Lenin de Stalin foi EH Carr, que descreveu como o regime de Lenin encorajou a classe trabalhadora a tomar parte ativa nos trabalhos do partido e da nação. Essa posição sobre “a democracia e os direitos dos trabalhadores” era completamente oposta à ditadura estabelecida por Stalin. Foram os conselhos de trabalhadores, os soviets , que tomaram o poder em outubro de 1917, e foram os seus delegados eleitos e sujeitos a revogabilidade que nomearam o governo. Os direitos dos trabalhadores, incluindo o direito à greve, foram consagrados. A criação de comités de fábrica e a negociação coletiva foram encorajadas. Os bolcheviques não eram a favor da proibição de qualquer partido, nem mesmo dos partidos burgueses, desde que não iniciassem a luta armada. No início, a única organização proibida foi a das Centenas Negras, constituída por bandos organizados como um partido protofascista especializado em ataques físicos a radicais e pogroms contra judeus.
A contrarrevolução de Stalin
O governo bolchevique provou ser o mais progressista da história nas suas primeiras decisões. Estas incluíram novas leis sobre os direitos da mulher, o direito ao divórcio e ao aborto. O antisemitismo e o racismo foram proibidos por lei. Foi dado às nações oprimidas o direito de decidir o seu destino. Foi o primeiro Estado que tentou criar uma nova ordem socialista, apesar das terríveis condições materiais.
A União Soviética de Lenin e o seu programa político foram esmagados pelo stalinismo. A chegada ao poder da burocracia stalinista significou uma contrarrevolução em todos os domínios, com exceção da economia estatizada. Os direitos dos trabalhadores, das mulheres e das nações oprimidas foram todos colocados sob o calcanhar de ferro. Em vez de “definhar”, que era a perspectiva de Lenin para o aparelho do Estado dos trabalhadores, cresceu para uma opressiva máquina policial-militar de proporções gigantescas. O stalinismo era uma ditadura nacionalista, um organismo parasita que vivia no corpo da economia planificada.
Este não foi um resultado inevitável da revolução dos trabalhadores, mas foi causado por circunstâncias concretas, pelo isolamento da revolução – particularmente com a derrota da revolução alemã de 1918-23 – e pelo atraso econômico da Rússia. O stalinismo, porém, não podia tomar o poder sem resistência, sem uma contrarrevolução política sangrenta. Os purgos e a caça às bruxas de Stalin em 1936-38 não foram ações cegas, mas sim a resposta da burocracia à crescente oposição ao seu regime. O principal acusado nos julgamentos de fachada foi o aliado de Lenin de 1917, Leon Trotsky, e os seus seguidores, que foram presos e executados aos milhares. Trotsky – que defendeu e desenvolveu o programa de Lenin e dos bolcheviques – foi expulso da União Soviética em 1929 e morto pelo assassino contratado por Stalin, no México, em 1940. Trotsky tornou-se o principal inimigo do regime de Stalin porque tinha efetivamente liderado a revolução em 1917 ao lado de Lenin (enquanto Stalin tinha hesitado e permanecido à margem), analisou e expôs detalhadamente o regime de terror de Stalin, e tinha um programa para derrubar o stalinismo e para restaurar a democracia dos trabalhadores.
Políticos burgueses e sociais-democratas do Ocidente também atacaram Trotsky como um líder marxista revolucionário. Compreenderam que as suas ideias não eram apenas uma ameaça para Stalin, mas também para o poder dos capitalistas. Durante os julgamentos de Moscou em 1936 o governo norueguês não permitiu que Trotsky, que então se encontrava na Noruega, se defendesse publicamente. Quando Stalin em 1943 dissolveu a Internacional Comunista (que foi criada em 1919 para ligar grupos revolucionários em todo o mundo), para conseguir uma aliança com os EUA e a Grã-Bretanha, o New York Times comentou que Stalin tinha finalmente renunciado à “ideia de Trotsky de revolução mundial”.
O antigo chefe espião de Stalin, Leopold Trepper, escreveu mais tarde: “Mas quem protestou nessa altura? Quem se levantou para exprimir a sua indignação? Os trotskistas podem reivindicar esta honra. Seguindo o exemplo do seu líder, que foi recompensado pela sua obstinação com o fim de uma picareta de gelo, lutaram até à morte contra o stalinismo e foram os únicos que o fizeram… Hoje, os trotskistas têm o direito de acusar aqueles que outrora uivaram juntamente com os lobos”. (O Grande Jogo, 1977) Podemos comparar o seu comentário com o de Winston Churchill, que nos anos 50 nomeou Stalin como um “grande estadista russo”.
Antes da contrarrevolução política do stalinismo, a liderança sob Lenin e Trotsky não agiu com os seus próprios interesses como primeira prioridade. Os princípios orientaram as suas ações, sobretudo para levar a luta dos trabalhadores para a frente à escala mundial. Admitiram quando se viram obrigados a recuar ou a fazer concessões.
O stalinismo, por outro lado, utilizou as condições dos anos da guerra civil e da fome em massa para construir um sistema político inteiramente novo. A sociedade stalinista foi descrita como um ideal perfeito, um mundo dos sonhos. A ditadura foi introduzida, não só na União Soviética, mas em todos os partidos “comunistas” em nível internacional. Isto continuou mesmo quando as economias dos países stalinistas atingiram o seu auge nas décadas de 1950 e 1960. Os debates e as tradições vivas do partido bolchevique tinham sido eliminados nas décadas de 1920 e 1930.
O stalinismo em palavras manteve uma ligação com a revolução. Marx e Lenin foram transformados em ícones religiosos porque isso ajudou a fortalecer esses regimes. A burocracia quis assumir os louros da revolução, o que em si mesmo é prova do seu poder de atração. O resultado final, porém, foi desacreditar os próprios conceitos de marxismo e “leninismo” na mente dos trabalhadores e das pessoas oprimidas em nível global. O “leninismo” tornou-se o slogan de uma ditadura parasitária.
Esta falsificação stalinista das ideias de Lenin e do marxismo foi aceita sem questionamento pelos socialdemocratas e pelas classes dominantes em nível internacional. Todos eles tinham interesse em esconder as verdadeiras ideias de Lenin. Trotsky e os seus seguidores defendiam a herança política de Lenin e opunham-se ao culto a personalidade que Stalin construiu. Em contraste com as críticas superficiais dos políticos do Ocidente, Trotsky tinha um programa científico e de classe contra o stalinismo. Trotsky, por exemplo, advertiu contra a coletivização forçada da agricultura liderada por Stalin em 1929-33 (enquanto alguns propagandistas antiLenin afirmam que foi Lenin que forçou a implementação da coletivização).
No livro Revolução Traída, escrito em 1936, Trotsky explicou em detalhes como as políticas de Stalin eram o oposto das de Lenin: sobre cultura, família, agricultura, indústria, direitos democráticos e nacionais, etc. Em todas as questões internacionais, o stalinismo rompeu com o programa e os métodos de Lenine, sobretudo a necessidade de independência da classe trabalhadora: na revolução chinesa de 1925-27, na luta contra o fascismo na Alemanha, na revolução espanhola na década de 1930 e em todas as outras lutas decisivas. Os comentadores antiLenin de hoje, ao salientar que a luta revolucionária é “irrealista”, acabam assim no campo de Stalin contra Lenin e Trotsky.
1917: o que foi conquistado?
A revolução de fevereiro de 1917 derrubou o regime ditatorial do czar. O governo provisório que substituiu o czar prosseguiu, no entanto, com as políticas que tinham conduzido à revolução. Os horrores da primeira guerra mundial continuaram, a questão da terra permaneceu sem solução, a opressão nacional intensificou-se, a fome nas cidades agravou-se, não houve eleições e uma enorme repressão foi dirigida contra os trabalhadores e os camponeses pobres. Estes desenvolvimentos, pouco mencionados pelos historiadores burgueses, lançaram as bases para o apoio maciço dos bolcheviques e para a revolução de Outubro.
Enquanto Rumsfeld & Co se apoiam em meros slogans , livros como “O livro negro do comunismo” são uma tentativa de dar uma justifitiva concreta e histórica à calúnia de Rumsfeld. Nicolas Werth, que escreveu o capítulo sobre os bolcheviques, tenta evitar virtualmente a política do outono de 1917. Ele contorna brevemente os decretos sobre paz e terra acordados no segundo congresso soviético, o encontro que elegeu o novo governo liderado por Lenin.
Foi esta reunião que aprovou as políticas exigidas pelos pobres desde Fevereiro e que eles próprios já tinham começado a aplicar – uma redistribuição drástica da terra. Foram os bolcheviques que realmente implementaram a palavra de ordem do Partido Socialista Revolucionário, “terra para quem nela trabalha” – terra para os 100 milhões de camponeses e sem terra. (Os Socialistas Revolucionários tinham um amplo apoio entre os camponeses, mas dividiram-se em linhas de classe em 1917. A sua ala mais à esquerda juntou-se ao governo soviético – antes de tentar derrubá-lo em 1918). Trinta mil ricos proprietários de terras, odiados por todas as camadas do campesinato, perderam suas terras sem compensação.
O decreto do governo bolchevique sobre a paz foi uma decisão de proporções históricas mundiais, aguardada por milhões de soldados e suas famílias há mais de três anos. Este efeito da revolução russa e da subsequente revolução alemã um ano depois, ao pôr fim à primeira guerra mundial (em novembro de 1918), é completamente escondido pelas campanhas caluniosas contra Lenin e a revolução.
Werth, em “O livro negro”, escreve que os bolcheviques “aparentavam” apelar aos povos não-russos para se libertarem. Na verdade, o governo declarou todos os povos iguais e soberanos, defendeu o direito à autodeterminação de todos os povos, incluindo o direito de formar os seus próprios Estados, e a abolição de todos os privilégios nacionais e religiosos.
As decisões de abolir a pena de morte no exército e de proibir o racismo, que mostram as verdadeiras intenções do regime dos trabalhadores, não são mencionadas em parte alguma no “Livro negro”. O mesmo se aplica ao fato da Rússia soviética ter sido o primeiro país a legalizar o direito ao aborto e ao divórcio. Também totalmente novo foi o direito das organizações de trabalhadores e das pessoas comuns a utilizarem as gráficas, tornando a liberdade de imprensa mais do que palavras vazias. O fato de que as críticas poderem ser levantadas nas ruas é comprovado por muitos relatos de testemunhas oculares. Os reformistas mencheviques e os anarquistas operavam em total liberdade e podiam, por exemplo, organizar manifestações de massas como nos funerais de Georgi Plekhanov e do príncipe Pyotr Kropotkin (em 1918 e 1921, respetivamente).
No terceiro congresso soviético, o primeiro após outubro de 1917, a maioria bolchevique cresceu ainda mais. O novo comité executivo eleito neste congresso incluía 160 bolcheviques e 125 socialistas revolucionários de esquerda. Mas havia também representantes de seis outros partidos, entre os quais dois líderes mencheviques. A democracia soviética estava se espalhando por todas as regiões e povoados, onde trabalhadores e camponeses pobres criaram novos órgãos de poder, sovietes locais, que derrubaram os velhos governantes. O domínio soviético significava que alguns pequenos grupos privilegiados da sociedade não tinham direito de voto: aqueles que contratavam outros para fins lucrativos ou viviam do trabalho de outros, monges e padres, mais os criminosos. Isto pode ser comparado com a maioria dos países europeus onde, naquela época, a maioria dos trabalhadores e todas as mulheres careciam de direitos sindicais e do direito de voto.
Lenin explicou a importância histórica da revolução: “O governo soviético é o primeiro no mundo (ou, a rigor, o segundo, porque a Comuna de Paris [1871] começou a fazer a mesma coisa) a envolver o povo, especificamente, o povo explorado, no trabalho da administração. Os trabalhadores estão impedidos de participar nos parlamentos burgueses (nunca decidem questões importantes sob a democracia burguesa, que são decididas pela bolsa e pelos bancos) por milhares de obstáculos, e os trabalhadores conhecem e sentem, veem e compreendem perfeitamente que os parlamentos burgueses são instituições alheias a eles, instrumentos de opressão dos trabalhadores pela burguesia, instituições de uma classe hostil, da minoria exploradora”.
Ao mesmo tempo, Lenin sempre teve uma perspectiva internacionalista. Chegou mesmo a advertir contra a utilização da experiência russa como um modelo a seguir em todo o lado: “A democracia proletária, de que o governo soviético é uma das formas, trouxe um desenvolvimento e uma expansão da democracia sem precedentes no mundo, para a grande maioria da população, para as pessoas exploradas e trabalhadoras”. “Há que observar que a questão de privar os exploradores do direito de voto é uma questão puramente russa e não uma questão da ditadura do proletariado em geral”. ( A Revolução proletária e o renegado Kautsky, 1918)
Lenin observou que uma vitória da classe trabalhadora “em pelo menos um dos países avançados” mudaria o papel da revolução russa: “A Rússia deixará de ser o modelo e voltará a ser um país atrasado (no sentido “soviético” e socialista)”. (Esquerdismo, doença infantil do comunismo, 1920)
“Cruzada” anti-soviética
Em Petrogrado, os representantes dos trabalhadores tomaram o poder em outubro quase sem derramamento de sangue. Os bolcheviques eram demasiado indulgentes com os seus inimigos. Em Moscou, os generais que tentaram deter os trabalhadores com armas não foram presos se prometessem não o voltar a faze-lo!
Os inimigos da revolução russa, pelo contrário, agiram de acordo com o lema de que contra os bolcheviques todos os métodos eram permitidos, observou Victor Serge no seu livro, “Ano Um da Revolução Russa” (1930). Primeiro, esperavam que os militares esmagassem o novo governo imediatamente após Outubro. Quando isso falhou, instigaram revoltas e sabotagens, ao mesmo tempo que rearmaram um exército “branco” contrarrevolucionário.
As nacionalidades oprimidas – os países bálticos, a Finlândia, a Ucrânia, etc. – tinham estado sob o domínio direto do governo provisório criado em fevereiro de 1917. Dada a possibilidade de autodeterminação nacional após outubro, a burguesia nacional distinguiu-se, não pelo desejo de independência, mas pelo convite às tropas imperialistas para atacarem o governo revolucionário. Na Ucrânia, o exército alemão manifestou a sua gratidão, proibindo o próprio “radan” (parlamento) que o tinha convidado. Os direitos nacionais não estavam garantidos na Ucrânia, enquanto o poder soviético sob a liderança dos bolcheviques não tivesse prevalecido.
O autor sueco antiLenin, Staffan Skott, prova involuntariamente o efeito libertador da revolução e como esta foi posteriormente esmagada por Stalin: “Sob o Czar, as línguas ucraniana e belorussa não tinham sido permitidas. Após a revolução, a cultura independente em ambos os países desenvolveu-se rapidamente, com literatura, teatro, jornais e arte. Stalin, porém, não queria que a “independência” fosse longe demais e se tornasse uma verdadeira independência. Após a década de 1930 não restava muito da literatura ucraniana e belorrussa – quase todos os autores tinham sido fuzilados ou enviados para campos de prisão para morrer”.
Depois de Outubro, “as pessoas da esquerda dos socialistas revolucionários” foram as únicas a cooperar com os bolcheviques, escreve Werth em “O livro negro”, para criar uma impressão de isolamento bolchevique. Mas ele tem de admitir que, no final de 1917, não havia uma oposição séria capaz de desafiar o governo. A fraqueza da violência contrarrevolucionária, nessa fase, dá também uma imagem fiel das intenções dos bolcheviques. Se o objetivo de Lenine era iniciar uma guerra civil – que “O livro negro” e outros afirmam – por que razão então a guerra civil só começou na segunda metade de 1918?
Na primeira metade de 1918, um total de 22 indivíduos foram executados pelo lado “Vermelho” – menos do que no Texas sob o governador George W Bush. A política pacífica ainda predominava. Houve debates animados nos sovietes entre os bolcheviques e outras correntes políticas.
Contudo, a casta dos oficiais e a burguesia na Rússia e em nível internacional estavam determinadas a agir militarmente. A guerra civil na Finlândia, na primavera de 1918, onde o lado branco ganhou à custa de 30 mil trabalhadores e pobres camponeses mortos, foi um ensaio geral para o que aconteceria na Rússia. Com o objetivo de invadir e derrotar a revolução russa, uma nova aliança foi rapidamente formada pelos dois blocos imperialistas que tinham estado em guerra um com o outro durante três anos (15 milhões de mortos na primeira guerra mundial). A propaganda de guerra britânica contra a Alemanha ignorou totalmente a invasão alemã da Rússia na primavera de 1918.
Foi Churchill que em 1919 cunhou a expressão “a cruzada antisoviética de 14 nações”. Nessa altura, o governo soviético estava cercado pelos generais brancos Pyotr Krasnov e Anton Denikin, no Sul, pelo exército alemão, no Oeste, e pelas forças checas, no Leste.
A maior parte da invasão ocorreu em 1918. As tropas britânicas chegaram ao porto de Murmansk, no noroeste da Rússia, em junho. Dois meses mais tarde, as forças britânicas e francesas assumiram o controlo de Arkhangelsk, com os EUA se juntando a elas mais tarde. Os EUA, com 8 mil soldados, e o Japão, com 72 mil, invadiram Vladivostok no Extremo Oriente, em agosto. As forças alemãs e turcas ocuparam a Geórgia, mais tarde sob controle britânico. A Geórgia tornou-se a base do exército do general Denikin. Entre outros, estiveram envolvidos a Romênia, uma legião de antigos prisioneiros de guerra checos, a Polônia, a Hungria, a Bulgária e os países bálticos.
Em 30 de agosto de 1918, o líder bolchevique, Moisei Uritsky, foi assassinado e Lenin ficou gravemente ferido num atentado contra a sua vida. Dois meses antes, a ala direita dos socialistas revolucionários tinha assassinado outro bolchevique, V Volodarsky, comissário de imprensa do soviet de Petrogrado. A crescente sede de sangue dos partidos da oposição ficou de novo provada em Baku, capital do Azerbaijão. Os bolcheviques perderam a sua maioria no soviete de Baku, onde os mencheviques e os socialistas revolucionários saudaram as tropas britânicas para “estabelecer a democracia”. Contrariamente à mitologia, os líderes bolcheviques renunciaram pacificamente – mas foram depois presos e executados por ordem do general britânico W. Thompson. As realidades da guerra civil triunfaram sobre a disposição dos bolcheviques a oferecerem a outros partidos a possibilidade de conquistar uma maioria dentro da classe trabalhadora.
O “terror vermelho” proclamado pelos bolcheviques em setembro de 1918 não tinha nada em comum com o que hoje se chama terrorismo. O “terror vermelho” era público, acordado pelo poder soviético, e dirigido contra aqueles que tinham declarado guerra contra o governo e os sovietes. Era em defesa da revolução e da libertação dos oprimidos, contra a exploração imperialista das colônias e dos escravos.
Os exemplos da Finlândia e de Baku tinham mostrado até que ponto o “terror branco”, os generais contrarrevolucionários, estavam dispostos a ir. Mesmo Werth em “O livro negro” é obrigado a referir-se ao estado de espírito do campo branco. “Abaixo os judeus e os comissários”, foi um dos slogans usados contra Lenin e Grigori Zinoviev, um bolchevique proeminente (eventualmente enquadrado num dos julgamentos de Stalin e executado em 1936). A brutalidade da guerra civil na Ucrânia só pode ser explicada pelo antisemitismo da contrarrevolução. Os soldados brancos lutavam sob slogans como, “Ucrânia para os ucranianos, sem bolcheviques nem judeus”, “Morte à escória judaica”. O Exército Vermelho esmagou as revoltas cossacas que estavam ligadas às forças do almirante Aleksandr Kolchak. “O livro negro” afirma que os cossacos foram especialmente perseguidos, mas as suas intenções eram claras e intransigentes: “Nós cossacos… somos contra os comunistas, as comunas (agricultura coletiva) e os judeus”. Werth estima que 150 mil pessoas foram mortas nos pogroms antisemitas conduzidos pelas tropas de Denikin em 1919.
Outra alternativa?
Na Rússia em 1917 e nos anos seguintes não havia possibilidade de uma “terceira via” entre o poder soviético e uma ditadura militar-polícia reacionária. Os mencheviques e os socialistas revolucionários, em particular, colocaram a questão à prova. Já durante a primeira guerra mundial, partes importantes da liderança menchevique tinham capitulado e aderido ao campo chauvinista ou patriótico, apoiando a Rússia czarista na guerra imperialista. Quando os sovietes dissolveram a Assembleia Constituinte, em janeiro de 1918, as duas partes entraram em negociações com representantes franceses e britânicos. Em cooperação com o partido burguês Cadete (Democratas Constitucionais), criaram uma nova Assembleia Constituinte em Samara, no Sudoeste da Rússia em junho de 1918, sob proteção checa. Esta assembleia dissolveu os sovietes da região. Foram perpetrados massacres contra os bolcheviques. Até os próprios jornais da assembleia se referiam a “uma epidemia de linchamentos”.
O argumento final da campanha antiLenin, antirevolucionária é que o “comunismo” matou mais de 85 milhões de pessoas – o arco anticomunista, RJ Rummel, diz que foram 110 milhões. Mas mesmo uma análise dos números apresentados em “O livro negro” contrapõe a afirmação de que o stalinismo e o regime de Lenin eram uma e a mesma coisa. Stephane Courtois afirma que 20 milhões das “vítimas do comunismo” foram mortas na União Soviética. Para o período 1918-23, porém, diz-se que o número de vítimas foi de “centenas de milhares”. Este número da guerra civil pode ser comparado, por exemplo, aos 600 mil mortos pelos bombardeamentos dos EUA no Camboja nos anos 70, ou aos dois milhões de mortos em consequência do golpe militar na Indonésia nos anos 60. “O livro negro” coloca a responsabilidade por todas as vítimas da guerra civil na Rússia, incluindo os 150 mil assassinados nos pogroms organizados pelo exército branco, em Lenin e nos bolcheviques. Segundo Serge, 6 mil pessoas foram executadas pelas autoridades soviéticas na segunda metade de 1918, quando a guerra civil se desenrolava, menos do que o número de mortos num único dia na batalha de Verdun, na primeira guerra mundial.
Do período até à morte de Lenin, Courtois também conta cinco milhões de mortos em consequência da fome de 1922. Os comunistas russos e os seus partidários mostraram internacionalmente como esta catástrofe foi o resultado do embargo econômico e da política de fome consciente das potências ocidentais a partir de 1919. As exportações pararam e as importações da Rússia foram, na prática, a zero. A Suécia estava entre os países que bloquearam a Rússia soviética.
Mas mesmo os académicos antiLenin “contadores de corpos”, acabam registrando que a maior parte das mortes “causadas pelo comunismo”, enumeradas em “O livro negro do comunismo” ocorreram sob o regime de Stalin ou regimes stalinistas subsequentes. Isso, porém, não altera a posição de Courtois ou de outros anticomunistas. Eles não advertem contra o stalinismo, mas contra “o desejo de mudar o mundo em nome de um ideal”.O Exército Vermelho prevaleceu na guerra civil devido ao apoio maciço à revolução social, tanto na Rússia como no exterior. Foi a ameaça de revolução em nível interno que obrigou as potências imperialistas a se retirarem da Rússia. Seis meses após o lançamento da Internacional Comunista em 1919, um milhão de membros tinha aderido. Metade deles vivia em países e regiões anteriormente governados pelo czar russo. Os novos partidos comunistas internacionais, porém, não tinham a experiência dos bolcheviques, que construíram o partido através de duas décadas de lutas – a revolução em 1905, o apoio maciço dos bolcheviques em 1913-14, etc. As derrotas das revoluções no resto da Europa – sobretudo na Alemanha – lançaram as bases do stalinismo. Agora é tempo de uma nova geração de socialistas aprender as verdadeiras lições de Lenin e dos bolcheviques, em preparação para os iminentes acontecimentos que abalarão o mundo.