Capitalismo global entra na segunda etapa da crise
O sistema capitalista global está mais uma vez oscilando à beira de uma grave crise financeira e recessão econômica. A crise da dívida soberana (pública) na Europa – que ameaça a existência do euro e até da União Europeia (UE) – está causando ondas de choque em todo o mundo. A perspectiva muito real de calotes da Grécia e de países maiores como Espanha e Itália se aproxima. Isso por sua vez pode derrubar os grandes bancos e desencadear uma nova crise de crédito ainda mais terrível que a após o colapso do Lehman Brothers 18 meses atrás.
Os eventos europeus – os maiores protestos de trabalhadores na Grécia em quase 40 anos, ataques draconianos aos salários, aposentadorias e empregos, e choques agudos entre os governos – são todos sintomas de uma doença crônica do sistema capitalista. A fase atual da crise é agravada pelas próprias políticas apresentadas como “a cura” para a fase anterior. Para superar a crise de crédito e o colapso parcial do sistema bancário global, os governos introduziram políticas de estímulo sem precedentes sob um plano coordenado globalmente pelo G20. Isso impediu uma contração econômica mais séria na época. Os governos resgataram bancos e companhias altamente endividados, em alguns casos nacionalizando-os como um “expediente temporário”. Mas com a economia ainda organizada nos moldes do capitalismo, cegamente, com gangues capitalistas rivais pondo lucros de curto prazo antes dos interesses globais da sociedade, então inevitavelmente os distorcidos pacotes “keynesianos” de resgate de 2008 e 2009 forneceram apenas um alívio temporário.
Como explica o economista Nouriel Roubini, “A socialização das perdas privadas e a frouxidão fiscal com o objetivo de estimular as economias em recessão tem levado a um acúmulo perigoso de déficits do orçamento público e dívidas. Então, a recente crise financeira global não acabou; ao invés, ela alcançou uma etapa nova e mais perigosa.”
Não são mais os bancos, mas os próprios governos que precisam de um resgate. Os resgatadores se tornaram os resgatados. Ao invés de devolver o favor, os ingratos bancos e instituições financeiras, ainda carregados de enormes perdas não-divulgadas, estão fazendo tudo para lucrar com isso e assim piorar a crise através da especulação frenética nos mercados de dívidas governamentais. Na Europa, os estados mais poderosos, Alemanha e França, estão relutantemente patrocinando um resgate dos estados mais fracos, começando com a Grécia.
Como os socialistas se esforçam para explicar, esse não é um resgate para a Grécia ou o povo grego, que enfrenta selvagens políticas de austeridade, mas para os bancos e o próprio sistema capitalista. Os bancos da Alemanha e França possuem 70% da dívida grega e se arriscam a serem prejudicados por um calote grego, i.e., o cancelamento dos pagamentos da dívida. O euro está em risco e, com ele, o prestígio e aspirações globais das principais potências europeias. O presidente francês Sarkozy ameaçou abandonar do euro se os líderes alemães não assinassem o último “pacote de resgate” para a Grécia, Portugal, Espanha e outras economias que são o elo fraco. Merkel, a chanceler alemã, verbalizou o que isso poderia significar quando disse: “Esse desafio é existencial e temos que enfrentá-lo. O euro está em perigo… Se o euro cair, então a Europa cai”.
Tal seria a desarticulação econômica da Europa no caso de um desmoronamento da união monetária capitalista europeia, com cada governo tentando diminuir suas próprias perdas às custas dos vizinhos, que a União Europeia talvez não poderia mais se manter juntos. Uma pressão social massiva e um sentimento anti-UE poderiam forçar os governos a romperem com a união. Em uma base capitalista isso provavelmente seria acompanhado de uma eclosão de nacionalismo e de ataques às “causas estrangeiras” da crise.
A condição perigosa da Europa capitalista explica o Fundo de Estabilização Europeu (FEE) de quase 1 trilhão de dólares lançado no início de maio pela UE e FMI para “acalmar os mercados” (i.e., os bancos e fundos hedge) numa tentativa de impedir que o contágio financeiro se espalhasse. Esse pacote sem precedentes de empréstimos de emergência, compras de títulos da dívida e garantias bancárias foi o equivalente europeu à “bazuca” produzida pelo antigo secretário do tesouro dos EUA Hank Paulson após o colapso do Lehman Brothers – o plano “TARP” de 700 bilhões de dólares para comprar os ativos tóxicos ou “problemáticos” acumulados pelo sistema bancário norte-americano. Resta saber se a “bazuca” europeia pode estabilizar a situação – a reação inicial do mercado foi de mais especulação contra o euro.
Como antes, essa é uma crise global. Não está circunscrita à Europa mais do que a crise “subprime” foi apenas um assunto americano. E como pontua Roubini, essa é potencialmente uma fase da crise muito mais séria do que a anterior. A interconexão do capitalismo está plenamente revelada. A Grécia apenas responde por um quadragésimo da economia da zona do euro mas sua crise da dívida ameaça redundar em uma crise financeira européia e até global.
No final de 2009, os bancos da Europa possuiam US$ 2,29 trilhões em risco na Grécia, Itália, Portugal e Espanha. Mais expostos estão os bancos franceses, com US$ 843 bilhões (dinheiro que seria perdido no caso de uma série de calotes soberanos). Mas os bancos dos EUA também estão seriamente expostos. Estima-se que apenas o JPMorgan Chase possui US$ 1,4 trilhão de exposições por toda a Europa, enquanto o Citigroup Inc. possui US$ 468,4 bilhões. Não por acaso, a administração Obama pressionou firme para que a UE/FMI produzissem sua “bazuca”.
Por toda a Europa os governos estão lançando uma massiva ofensiva contra a classe trabalhadora. Isso foi algo que os socialistas do Comitê por uma Internacional dos Trabalhadores (CIT) alertaram que ocorreria quando os programas de estímulo foram desvelados 18 meses atrás. Na Grécia os salários serão cortados em 20-25% e o desemprego pode dobrar para um quinto da força de trabalho no próximo ano. A Espanha, também governada por um suposto governo “socialista”, planeja as maiores reduções orçamentárias em 30 anos.
O que está acontecendo na Europa agora é uma antecipação do que virá na Ásia amanhã. Nos EUA, a situação a nível dos estados já parece distintamente “europeia”. O colunista do Washington Post Michael Gerson alerta: “Alguns estados grandes, como Califórnia e Nova Iorque, estão à beira da inadimplência. Eles conseguirão grandes reduções de gastos apenas cortando seus níveis salariais e de aposentadoria do funcionalismo público. Isso criará uma grande batalha entre os governos estaduais e o movimento dos trabalhadores”.
Os partidos e comentaristas capitalistas estão falando não de alguns anos difíceis, mas de uma “era de austeridade”. A menos que os trabalhadores se organizem, preparem e lutem então se aproxima uma era sem fim de ataques à frente. No caso do Japão, um estudo recente do instituto suíço IMD fala de “70 anos de austeridade” – teria que se esperar até 2084 para o Japão reduzir sua dívida estatal, atualmente 189% do PIB, a um nível “normal” de 60%. Os capitalistas estão elaborando planos para empobrecer a classe trabalhadora e tomar de volta os ganhos de meio século de luta sindical e política.
A China está sendo louvada pelos capitalistas como um dos principais fatores por trás da “recuperação” global. Credita-se às medidas de estímulo dos últimos 18 meses a sua restauração ao topo da lista da liga de crescimento do PIB (8,7% ano passado e 11,9% no primeiro trimestre deste ano). A demanda global da China, especialmente de matérias primas, estimulou economias na Ásia e África, e em certa medida as protegeu contra a recessão. Mas a China poderia estar agora se encaminhando para um pouso forçado econômico? Sua fuga da recessão através do crédito no final de 2008 produziu problemas similares àqueles que vemos em outros lugares?
A ditadura chinesa atualmente está lutando com uma enorme bolha imobiliária que ameaça o sistema bancário em linhas similares ao que aconteceu nos EUA. O regime realizou uma façanha similar à de Alan Greenspan, ex-presidente do banco central dos EUA, que criou ma série de bolhas de ativos, cada uma como uma “solução” aos problemas criados por sua antecessora. Por duas décadas, desde meados dos 1980, essas políticas criaram uma ilusão de riqueza nos EUA e levou a níveis recordes de consumo mesmo quando os salários reais declinavam.
Nos últimos 16 meses os bancos da China fizeram novos empréstimos, totalizando 13 trilhões de yuan, sob uma política de crédito ultrafrouxo adotada pelo regime em face a crise global. Essa é uma expansão do crédito sem precedentes para qualquer país. “Quando medido em relação ao tamanho de sua economia, o salto de a equivalente 27% do PIB para os empréstimos bancários é sem precedentes; em nenhum ponto da história uma nação tentou tal aumento inacreditável nos empréstimos bancários guiados pelo estado”, comente o gerente de fundos hedge Hugh Hendry. Ele prevê que a bolha do crédito irá estourar, acionando uma “crise muito maior em outros lugares do mundo”.
Essas políticas foram empreendidas para estimular o consumo doméstico a fim de contrabalançar a queda nas exportações. Ao invés de aumentar os salários e a fatia do bolo econômico nacional que vai para a classe trabalhadora, uma política que teria resistência das companhias e governos regionais que respondem pela maioria dos investimentos, os altos funcionários chineses, especialmente a nível regional e municipal, copiaram a receita do livro de Greenspan e outros magos neoliberais e usaram o mercado habitacional para dirigir o crescimento econômico. A fatia do PIB da China que vai para o trabalho caiu de 17% nos anos 1980 para 11%. A federação sindical títere ACFTU revelou recentemente que 23,7% dos trabalhadores não tiveram um aumento salarial durante cinco anos.
O mercado imobiliário, pelo contrário, experimentou um crescimento explosivo. O HSBC estima que o valor total deste mercado na China, baseado nos preços atuais, exceda os 109 trilhões de yuan, o que é quase 3,3 vezes o PIB. Isso é quase o dobro do pico obtido nos EUA durante o boom habitacional de ‘subprime’ e quase o nível alcançado durante a economia bolha do Japão no final dos anos 1980. Em quase sete anos o valor do mercado chinês de residências disparou de níveis insignificantes. Ano passado, por exemplo, enquanto o mercado imobiliário dos EUA continuava sua espiral descendente, em torno de 8 milhões de novas casas foram vendidas na China, contra 500.000 nos EUA.
O sistema bancário da China está construído em torno de taxas de juros baixas sobre os depósitos, que são negativos em termos reais (menores que a inflação). A classe média e os trabalhadores mais bem pagos portanto procuram estocar suas poupanças em propriedades e em menor extensão no mercado de ações (em declínio). Sob as políticas de estímulo lançadas pelo premier Wen Jiabao no final de 2008, as hipotecas ficaram mais baratas e fáceis de adquirir. Em Shanghai, novas hipotecas subiram em 1.600% em 2009 (de 5,8 bilhões em 2008 para quase 100 bilhões de yuan). Esse boom habitacional guiado por liquidez empurrou os preços para níveis recordes. Os preços das casas em Shanghai e Beijing dobraram em menos de quatro anos antes do início da crise capitalista global e desde então dobraram mais uma vez. Mas “os preços nas cidades de segundo e terceiro nível estão aumentando mais dramaticamente do que no primeiro nível”, diz Cao Jianhai da Academia Chinesa de Ciências Sociais (ACCS). “É muito perigoso e coloca os bancos locais em risco”.
A bolha imobiliária acentuou o incrível abismo de riqueza da China. Apenas 20 países – todos na África ou América Latina – possuem uma divisão mais desigual de riqueza do que a “república popular”. O abismo de renda entre os 10% mais ricos da população e os 10% mais pobres aumentou para 23 vezes em 2007, de 7,3 vezes em 1988, relatou o Global Times (10/05/2010). O mesmo jornal (filial do Xinhua News Agency) revelou que os rendimentos dos altos executivos das empresas estatais (SOEs) são 128 vezes maiores do que o salário médio em todo o país.
A desigualdade na China quebrou a “linha vermelha” do limite de perigo estabelecido pelo Banco Mundial para alertar sobre a instabilidade social e política. Esse usa o chamado índice Gini, uma medição internacional de desigualdade de renda. “O índice Gini da China viu aumentos consecutivos desde que excedeu a linha de alerta internacional de 0,4 dez anos atrás, e o abismo de pobreza do país quebrou a linha limite”, diz Chang Xiuze, especialista da Academia de Pesquisa Macroeconômica (AMR) da Comissão de Reforma e Desenvolvimento Nacional (NDRC). O último índice Gini da China é de 0,47, comparado a 0,42 na Rússia e 0,37 na Índia.
O ACCS estima que 85% da população não pode se permitir comprar um apartamento mesmo nos termos de empréstimos concessionários que o governo central introduziu no final de 2008, o qual agora abandonou. Há entre 10-20 milhões de apartamentos vazios na China, um fenômeno inédito. Beijing e Shanghai são famosas por conjuntos habitacionais que mal têm um só apartamento iluminado à noite. Esses apartamentos são objetos de especulação ao invés de lares. Mas centenas de milhões são forçados a viver em habitações apertadas e precárias.
Os preços imobiliários estão sendo guiados pela especulação desenfreada e sistêmica. Resta saber se o governo central pode colocá-la sob controle. As políticas de arrocho das semanas recentes (regras de empréstimos mais duras para os bancos, retirada de termos com hipotecas e e restrições sobre o acúmulo de terras por empreendedores) levaram a uma dramática desaceleração das vendas de casas e fuga de capital do setor imobiliário. Há o risco de que as medidas sejam “efetivas demais” mas, igualmente, que depois de um curto prazo a bolha imobiliária cresça novamente.
“Poderosos grupos de interesse paralisaram a macropolítica da China”, diz o economista Andy Xie. Altos funcionários corruptos, grandes companhias estatais, governos locais e empresários capitalistas, todos apostam pesado na perpetuação do carrossel do aumento de preços. Em março, quando o governo central começou esforços para domar os especuladores, 78 empresas estatais centrais (SOEs), incluindo algumas das maiores companhias da China, foram banidas do mercado imobiliário, embora não sejam forçadas a abdicar de propriedades em terras, que são substanciais. O papel das SOEs em aumentar o preço das terras por ganhos financeiros tem sido um fator chave nas subidas de preços do ano passado. Mas 16 SOEs cuja propriedade é considerada “interesse central” não são afetadas pelas novas regras. Essas 16 companhias, que são postas para ganhar já que suas rivais são empurradas para fora do mercado, respondem por 86% de todos os rendimentos das SOEs em vendas de propriedade em 2009. Então, as novas regras para as SOEs terão apenas um efeito limitado.
Xie argumenta que as tendências atuais na China se assemelham ao “frenesi final numa mania financeira”, i.e., pouco antes da bolha estourar, como testemunhado em outros países: “As consequências podem ser catastróficas – como o Japão mostrou 20 anos atrás, o Sudeste Asiático 10 anos atrás, e os EUA estão demonstrando agora”. Membros da classe média chinesa têm esvaziado suas contas de poupança e penhorado até a alma para entrar no mercado imobiliário. Há relatos de casais se divorciando para driblar os novos limites governamentais que estipulam “uma família, um apartamento”. Um jovem de 27 anos de Hefei confessou “Para as pessoas de minha geração, propriedade é tudo o que conversamos”.
Há vozes apaziguadoras entre os economistas capitalistas que apontam para as estatísticas mostrando os baixos níveis de endividamento da China em comparação com outras regiões. A dívida imobiliária chinesa equivale a 17% do PIB em oposição aos 96% nos EUA e 62% na zona do euro, baseado em dados oficiais. A dívida estatal da China também é modesta quando comparada à da Grécia e Japão. Mas são tais comparações, baseadas em estatísticas oficiais, confiáveis? Um dos traços do enorme boom imobiliário guiado pelo crédito na China dos últimos 18 meses tem sido a proliferação de entidades financeiras de governos locais – UDICs (corporações de investimento para o desenvolvimento urbano). Agora existem 8 mil de tais companhias, comparado com quase nenhuma dois anos atrás. Os governos locais são proibidos por lei de se endividar e portanto esses veículos estão fora do balanço patrimonial – similares aos criados pelos bancos ocidentais para retirar os empréstimos ‘subprime’ de sua contabilidade oficial – têm sido criados para que eles possam acessar crédito bancário e jogar no mercado imobiliário.
Acredita-se que as UDICs tenham causado o aumento das dívidas bancárias de entre 8 para 11 trilhões de yuan para financiar projetos de infraestrutura patrocinados por governos locais, muitos dos quais podem azedar, especialmente no caso de uma quebra no setor imobiliário. Segundo Victor Shih da Northwestern University dos EUA, as dívidas combinadas de tais entidades ligadas a governos locais pode alcançar os 24 trilhões de yuan até o fim deste ano, o que equivale a dois terços do PIB. Em Chongqing, a maior cidade da China, a dívida do governo local disparou para 200% de sua receita anual – um nível que está em paralelo com os problemas do governo grego!
As companhias de investimento dos governos locais foram instrumentais para aumentar o preço dos terrenos – usando preços de terra mais elevados para impulsionar suas colaterais e tomar mais empréstimos. Em resumo, uma crise de dívida dos governos locais pode ser iminente, com Nomura do Japão alertando que as más dívidas do sistema bancário podem aumentar rapidamente para 20% dos níveis desprezíveis de hoje, precisando de um resgate governamental. Uma situação similar surgiu em 1998, forçando o governo a resgatar os bancos, mas naquela época a economia global ainda estava crescendo e a China sair da crise se baseando na exportação.
Não é possível prever com precisão quando a bolha imobiliária da China irá estourar, mas parece que é apenas uma questão de tempo. É improvável que as últimas restrições do governo induzam a uma desaceleração controlada, mas podem sob certas condições acionar uma recessão com efeitos similares ou estouro da bolha imobiliária dos EUA.
Isso seria objetivamente a bancarrota do atual regime – sua dependência de um sistema econômico que já causou prejuízos em uma escala espetacular. O capitalismo está doente e nenhuma regulamentação governamental pode curá-lo. Apenas a abolição do capitalismo, com a transferência do poder na sociedade e do controle das maiores companhias e bancos para a classe trabalhadora, sob uma base democrática socialista e planificada, pode oferecer uma verdadeira solução.