No zênite, de Duong Thu Hong

Já se tornou um chavão dizer que, com o desenvolvimento cada vez maior dos meios de comunicação, entramos na era em que o mundo é uma grande “aldeia global”. Exageros à parte, um fato imensamente positivo é que, com muito mais facilidade do que antes, podemos entrar em contato com realidades que antes só chegavam até nós de forma escassa e fragmentária, muitas vezes enviezada pelas posições ideológicas de seus porta-vozes.

A expansão da economia dos países asiáticos aumentou o interesse por esses países até mesmo aqui no Brasil. Nos últimos anos, tem sido enorme a quantidade de livros de autores chineses, indianos e coreanos publicados pelas mais diversas editoras. Com isso, passamos a ter contato não só com a cultura milenar desses países, mas também com os dramas e tragédias históricas mais recentes de povos que, neste século, estiveram no centro de alguns dos mais importantes acontecimentos mundiais.

Nas décadas passadas, a China e o Vietnã foram países que estiveram nas mentes dos militantes e ativistas do mundo todo. A fraseologia e as imagens da Revolução Cultural, ao lado dos movimentos de libertação dos países da África e da Revolução Cubana, incendiaram a imaginação de jovens do Ocidente, que pensavam ver nelas uma alternativa “revolucionária” aos partidos comunistas pró-Moscou, burocratizados e quase sempre comprometidos com a manutenção da ordem burguesa. A retórica de Mao sobre o papel principal dos camponeses nas revoluções do mundo subdesenvolvido foi adotado como artigo de fé por muitos militantes que, sem enxergar a necessidade de comprovar esses postulados na realidade concreta de seus países (afinal, a Revolução Chinesa foi vitoriosa, então devia ser verdade), levaram a si mesmos e os movimentos que dirigiam ao martírio e a uma morte violenta ao tentarem organizar guerrilhas rurais. A realidade concreta do mundo camponês chinês, e as mudanças que a revolução trouxe para ele, eram emudecidas pelo “mito” da Longa Marcha e da Revolução Cultural.

Quanto ao Vietnã, bastava o poderoso exemplo de um país pobre, subdesenvolvido, com armas rudimentares, derrotando e humilhando a maior potência econômica e militar que o mundo já conheceu. Esse foi outro fator que entusiasmou jovens de todo o mundo, que pensavam encontrar nos exemplos chinês e vietnamita a “chave” para a realização de seus sonhos de transformação da sociedade. Isso embotou o senso crítico dessas pessoas a respeito do tipo de sociedade que estava sendo construída na China e Vietnã.

Apesar de todas as proclamações revolucionárias, os partidos comunistas destes países chegaram ao poder usando levantes camponeses, repetindo o padrão tradicional da história da Ásia, quando uma dinastia era derrubada e uma nova ocupava seu lugar. Tomando como modelo não a revolução democrática dos operários russos de 1917, mas o regime degenerado que surgiu com o fracasso dessa revolução, esses partidos construíram um governo totalitário, antidemocrático e repressivo, sob uma base material e cultural extremamente baixa, economia atrasada e devastada por décadas de guerra. Por conta disso, apesar da novidade da planificação da economia, e isentos de um controle democrático por parte da população, o governo desses países adquiriu em alguns momentos uma feição que lembrava as cortes medievais dos antigos imperadores, com suas camarilhas, intrigas palacianas e luta desenfreada pelo poder. Enquanto isso, a grande massa da população, em especial a classe camponesa, padecia com os terríveis padrões de vida e a opressão do regime totalitário stalinista, que nessas variantes asiáticas adquiriu níveis de glorificação e endeusamento de seus líderes que ultrapassavam até mesmo o culto a Stalin.

Graças ao boom da literatura asiática dos últimos anos, agora é possível conhecer melhor as condições de vida e a história desses povos que, por tanto tempo, sofreram do anonimato e da mistificação impostas em nome da “revolução”. Infelizmente, a maioria dos escritores que ganham notoriedade no Ocidente, o conseguem por suas posições políticas anticomunistas e conservadoras, como Jung Chang, autora do emocionante Cisnes Selvagens e de uma péssima biografia de Mao Tsé-Tung. Apesar disso, não há como negar o valor literário dela e de outros escritores chineses, como Yu Hua, Yiyun Li e Ha Jin, pois suas obras se propõem a uma função simples da literatura: mostrar a verdade da vida do povo, em toda a sua tragédia e miséria inerentes a uma situação de opressão. Pouco a pouco, estão demolindo o mito maoísta e preparando o resgate da história do povo chinês.

No Zênite, de Duong Thu Hong, é, pelo que sei, o primeiro romance vietnamita publicado no Brasil. E é uma grande estréia. A autora, uma dissidente política em seu país e ativista dos direitos humanos, não deixa que sua ideologia anticomunista prejudique a composição artística da narrativa. Ela pinta um retrato grandioso e trágico do povo vietnamita durante a guerra de reunificação. O personagem central é o fundador do Estado stalinista do Vietnã, Ho Chi Minh, nomeado apenas como “O Presidente”. Envelhecido, ele não possui mais as rédeas do poder, sendo afastado do governo por seus antigos camaradas, que o mantém vivo apenas na medida em que ele pode lhes servir como um ícone religioso de onde tiram suas pretensões de legitimidade.

Isolado em uma região montanhosa (para “tratamento de saúde”), ele reflete sobre sua vida e seus erros, misturados ao remorso pelo amor de uma mulher, Xuan, que ele permitiu ser morta por seus próprios camaradas. As imagens que a autora evoca, reflexões de amargura misturadas com a descrição da bela paisagem das montanhas vietnamitas, num estilo que retoma as tradições literárias do país, são de uma beleza sem igual.

Ao lado disso, há a narrativa que revela os meandros do poder vietnamita, com suas intrigas palacianas e a opressão que se abate sobre o povo comum. Além do Presidente, a narrativa acompanha a trajetória de seu mais antigo colaborador e único amigo sincero, Trahn Vu, que tenta proteger o filho do presidente ao risco da própria vida; Hoang An, cunhado de Xuan, que foi obrigado a fugir e agora, oculto sob nova identidade, vive sonhando com a vingança contra os assassinos de sua cunhada; e os moradores de uma aldeia vizinha ao refúgio do presidente, envolvida do drama de uma guerra entre pai e filho.

Um dos momentos de maior intensidade dramática é quando o Presidente, assombrado pelos fantasmas do passado, inicia um diálogo com o fantasma de Mao Tsé-Tung (aqui chamado de “Presidente Man”), “o homem mais poderoso em toda a história do Extremo-Oriente”. As impressões trocadas entre os dois lembram um gênero muito popular na China e Sudeste Asiático, o “Drama de Fantasmas”, sobre histórias de fantasmas de vítimas que buscavam vingança contra os que os perseguiram em vida. No entanto, Mao estava vivo na época do diálogo, comandando a Revolução Cultural, e não tinha sentimentos de vingança em relação ao “Presidente”. Pelo contrário, o seu fantasma trata Ho com uma mistura de desprezo e paternalismo, agindo como um imperador diante de um vassalo. Mas, de fato, Mao simboliza para Ho o regime grotesco que ajudou a construir, assassinou sua mulher e agora o mantém preso em uma gaiola dourada, a obra de sua vida transformada em um monstro sobrenatural no qual ele não consegue mais identificar seus sonhos heróicos do passado. Uma das primeiras coisas que o fantasma faz é rejeitar o tratamento de “camarada” usado nos encontros convencionais dos partidos comunistas, e que se tornou uma palavra sem sentido, mais uma mistificação, que não correspondia à realidade dos novos donos do poder: “O termo camarada está morto. Por isso, baixo as máscaras! Entre nós dois existe um imperador e um vassalo. Você é o rei dos povos vassalos Viêt”.

Não só na forma esse encontro fantasmagórico evoca o passado medieval asiático. Todo o diálogo entre os dois traz alusões e referências ao passado sanguinário das lutas pelo poder entre as dinastias, onde a ideologia era um mero acessório na conquista. Ao se mencionarem dois reis legendários por sua bondade, Man (Mao) diz: “Nghiêu e Thuân são como a ideologia comunista. Apenas santinhos que se queimam em homenagem aos espíritos. Ninguém quer realmente saber deles. Só servem como isca para atrair os povos até as armadilhas de que dispomos, para depois manipulá-los”. E arremata com essas palavras magistrais seu desprezo pelo povo: “Sugo o sangue deles como um camponês extrai água para a irrigação. Lavo com seu sangue os degraus que levam ao trono, pois o vermelho é a cor do poder e da glória. E nenhum vermelho é mais belo que o do sangue humano”.

Ao lado da trajetória solitária e amargurada do presidente, a autora também acompanha o cotidiano de uma pequena aldeia, vizinha ao refugio presidencial. O centro dessa narrativa gira ao redor do drama familiar de um pai que rejeita os filhos de seu primeiro casamento quando estes não aceitam que ele se case com uma mulher vinte anos mais jovem. A história deles serve como um paralelo à história de Ho, o “pai da nação”, que modelou e criou os seus sucessores no poder, e que depois se voltaram contra ele e sua intenção de alcançar um mínimo de felicidade pessoal: “O sonho de amor é imenso, como o oceano, mas na vida real a generosidade e a abnegação não passam de miseráveis e pequenos fios de água”. Por trás dessa história, está o horror de uma sociedade tradicional ante a dissolução dos laços familiares, que na sua ótica anuncia calamidades para toda a comunidade.

Ao lado disso, há a história de Trahn Vu, amigo do Presidente. Homem do aparato partidário, ele no entanto se vê impotente para agir contra as maquinações dos homens do poder. Sua luta inútil para tentar mudar a ordem das coisas é uma confissão da impotência de uma geração, que conquistou a independência, mas criou em seu lugar um regime despótico que fez ressuscitar, como um pesadelo, todo o passado feudal que queriam enterrar, atomizando e destruindo todas as resistências e reduzindo o individuo a um mero número frente ao Estado.  

Na conversa que tem com um dos poucos amigos em que pode confiar, Vu encontra a verdade sobre a sua situação: “Desde a libertação da capital, percebemos que o encanto tinha se esvaído e o sonho, quebrado. Todos compartilhávamos o mesmo ao nos engajar sob a bandeira da Resistência. Para uma sociedade atrasada, para um povo escravo, aquela era realmente a única oportunidade de enterrar os dissabores do passado a fim de construir uma vida nova. O sacrifício individual valia a pena. Dava-se a vida pela pátria, ou, melhor, por um futuro radiante. Todas as revoluções verdadeiras libertaram as forças produtivas e ampliaram o campo da liberdade. Infelizmente, nossa Revolução, embora tenha conquistado a independência de nosso povo, não libertou sua capacidade de produção. Ao contrário, ao destruir todos os seus valores culturais, ela pôs abaixo a força da produção. A reforma agrária constituiu um desmantelamento, levado a cabo metodicamente, em grande escala, de nosso campesinato. Do ponto de vista sociológico, a Revolução trouxe o lodo para a superfície da água. Expôs todos os cadáveres, a podridão das algas e o lixo que ficava no fundo”.

Este é um balanço duro e pessimista sobre o processo revolucionário vietnamita. No entanto, as novas gerações de trabalhadores não têm motivos para serem pessimistas. A ditadura stalinista que governa o país abriu o país para a instalação de multinacionais, atraídas pela mão de obra barata, e no processo industrializou e urbanizou o país. Portanto, o futuro do Vietnã está nas mãos de sua classe trabalhadora, numerosa e disciplinada, frente a qual nenhum estado totalitário pode se manter eternamente. Para se afirmar, ela precisa elaborar um balanço sóbrio e lúcido do seu passado. Para isso, romances como No Zênite lhe serão indispensáveis.