200 anos depois: Independência para quem?

No dia 7 de setembro o Brasil completou 200 anos de sua independência em relação a Portugal. Essa é uma data histórica, repleta de significados e que se passará dentro de um contexto de disputa eleitoral, de uma aguda crise social e econômica e do acirramento da luta de classes. 

Bolsonaro e seus apoiadores organizaram uma série de manifestações no Dia do Bicentenário da Independência para rearticular a sua base política e para fortalecer a sua campanha eleitoral. 

Os bolsonaristas repetiram o que fizeram em 2021, quando colocaram muitos apoiadores nas ruas, elevaram o tom golpista, pediram intervenção militar e questionaram a confiabilidade das urnas eletrônicas. Tudo isso foi precedido, no mês de agosto, por um desfile de tanques enferrujados e fumacentos que pretendiam ameaçar o Congresso Nacional no dia da votação do voto impresso, que foi rejeitado. Bolsonaro seguirá nesse tom golpista com sua base e a classe trabalhadora precisa dar respostas nas ruas e nas urnas.

Um elemento que serviu para temperar esse cenário dos 200 anos da Independência foi a vinda do coração de Dom Pedro para o Brasil. Fruto de uma articulação do Ministério das Relações Exteriores, o coração do imperador saiu de Portugal, foi recebido por Jair e Michelle Bolsonaro e está exposto no Palácio do Itamaraty, em Brasília. O fato do coração de um monarca viajar para o Brasil pela primeira vez em um momento histórico como o que vivemos não é algo que pode passar despercebido. Esse é um elo com um passado que precisamos revisitar.

De qual Independência falamos?

A Independência do Brasil em relação a Portugal foi algo que se deu processualmente e que teve no dia 7 de setembro de 1822 apenas o seu desfecho final, se é que se pode falar em um fim bem determinado. 

A família de Dom Pedro foi formada politicamente dentro das práticas absolutistas, quando não havia a divisão republicana em três poderes e quando a nobreza e os reis possuíam um grande poder político. Esse é um fato importante porque o autoritarismo da Família Real causou diversos tensionamentos sociais no Brasil e ajudou a produzir instabilidades que levariam a revoltas por parte das elites locais e das camadas populares.

No Brasil colonial, vinham se desenvolvendo grupos sociais que passaram a ter poder político. Dentre eles, estavam os latifundiários e os comerciantes. Esses grupos se beneficiavam da exportação do açúcar, da extração do ouro, da criação de gado, da importação e revenda de itens, do tráfico de escravizados, dentre outros. Embora de forma dispersa, esses grupos passaram a questionar o poder da Coroa Portuguesa. 

Interesses econômicos

Os grupos sociais que se formavam passaram a buscar ampliação do comércio e maior participação nas decisões políticas, mas esbarravam em um sistema em que Portugal exercia um duro controle da colônia. A Coroa Portuguesa dificultava a expansão do comércio ao exigir que o Brasil negociasse apenas com a metrópole lusitana. Politicamente, os principais postos administrativos e as maiores patentes das tropas eram controlados por portugueses vinculados à Coroa, dificultando o protagonismo dos colonos.

Somado a isso, os impostos que a administração portuguesa impunha à colônia eram pesados, como ocorreu no período da extração do ouro na região das Minas Gerais, com impostos como o “quinto” e a “derrama”, uma cobrança violenta que foi utilizada apenas uma vez, mas cuja execução era uma ameaça constante.

Esses fatores geraram atritos entre as elites locais e as camadas populares de um lado e a Coroa portuguesa de outro. Algumas localidades passaram por tensionamentos nos anos que precederam a Independência, como o Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. Também houve revoltas explícitas nesse mesmo período. Elas aconteceram em locais como Minas Gerais, Pernambuco e Bahia. A Inconfidência Mineira reivindicou a independência da capitania e a criação de uma república. A Revolução Pernambucana de 1817 proclamou uma república e tinha caráter separatista. A Revolta dos Alfaiates ou Conjuração Baiana, que teve lideranças negras e escravizadas, defendeu o fim da escravização, a independência e a criação de uma república. 

Todos esses movimentos foram duramente reprimidos pela Coroa e tanto em Minas quanto na Bahia, os únicos a serem mortos para servirem de exemplo foram os das camadas populares. Foi o que ocorreu com Tiradentes em Minas e, na Bahia, com 4 lideranças negras/mulatas. Nessas duas capitanias, esses líderes também foram esquartejados e pedaços de seus corpos foram distribuídos pela cidade em sinal de ameaça.

Houve, portanto, tentativas de libertação diferentes do que viria a ser o 7 de setembro. Algumas delas foram populares, mas esses movimentos eram dispersos e não tiveram o nível de articulação necessário para eclodir e se manter, ao que lhes foram impostos finais violentos. 

A chegada da família real

Em 1808, a família real, fugindo das invasões francesas coordenadas por Napoleão Bonaparte, veio para o Brasil e se alojou no Rio de Janeiro. Isso gerou profundas mudanças, pois o país deixou de ser colônia para se tornar Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Houve a abertura dos portos às “nações amigas”, notadamente à Inglaterra, expansão das possibilidades de comércio, transferência da administração portuguesa, criação do Banco do Brasil e da Biblioteca Nacional e circulação dos primeiros jornais impressos no país. As elites locais passaram a ter parte de seus anseios de maior liberdade atendidos, ao mesmo tempo que diversos impostos foram aumentados para manter os luxos da corte. 

As conquistas desse período, no entanto, passaram a sofrer ameaças quando as elites lusitanas retomaram o controle de Portugal, forçaram o retorno da família real para a Península Ibérica e iniciaram um projeto de recolonização do Brasil. Naquela fase histórica, a classe dominante brasileira não aceitaria tal retrocesso e tensionou para Dom Pedro permanecer no Brasil e, ao fim, proclamar a Independência.

Escravização e estrutura fundiária foram mantidas

Esse ato foi protagonizado pelos latifundiários, grupos liberais e comerciantes. Por essa razão, manteve-se a estrutura de terras e a escravização. Diferentemente do que ocorreu na maioria dos países da América Latina, a Independência do Brasil não levou à criação de uma república e o governo seguiu nas mãos da mesma família que em outro momento era a responsável pela colonização. Também não foi uma independência popular aos moldes de países como o Haiti, quando a população negra, inspirada pelos ideais da Revolução Francesa, tomou o poder na ilha caribenha.

A Independência brasileira, na verdade, foi liderada pelos grupos sociais que temiam a Revolução Haitiana, pois muitos deles eram senhores de escravizados. A Independência não foi um processo pacífico, pois houve batalhas na Bahia, no Pará, no Maranhão e na região da Cisplatina (atual Uruguai), mas foi uma independência conservadora que gerou pequenas rupturas e manteve estruturas. Uma dessas continuidades foi o Poder Moderador, um resquício do absolutismo com o qual Dom Pedro podia vetar as decisões dos outros poderes que foram criados. 

A Independência que precisamos construir

A Independência que Bolsonaro usa como símbolo de patriotismo para articular a sua base política, portanto, é a dos latifundiários, da burguesia e dos escravocratas. Não é à toa que um dos setores que o apoia é o do agronegócio, que destrói o meio ambiente, envenena os alimentos e assassina indígenas e sem-terra.

O coração de Dom Pedro, portanto, é o símbolo de um poder autoritário que não hesitava em passar os seus adversários no fio da espada. Diferentemente disso, nossas tarefas compreendem concluir o que a Independência não fez, ou seja, a reforma agrária, a reparação histórica com o povo negro e indígenas, processos que apenas a classe trabalhadora pode conduzir.