O conflito interimperialista e uma nova Guerra Fria
Este artigo foi escrito a partir da abertura realizada por Sonja Grusch, membro da Executiva Internacional da ASI durante a Universidade Marxista Virtual em julho de 2020.
O cenário de fundo da discussão e o período em que estamos é o de uma profunda crise estrutural do capitalismo, de recessão mundial, disparada e acelerada (mas não criada) pela pandemia de COVID-19.
Elementos básicos e esclarecimentos
Eu quero começar com alguns elementos básicos e esclarecimentos sobre o imperialismo e comparações entre a Guerra Fria que existiu no século XX e os conflitos interimperialistas de hoje.
Em relação ao imperialismo, devemos resgatar cinco das suas características essenciais, tais como foram definidas por Lenin no sétimo capítulo do seu livro “Imperialismo: fase superior do capitalismo”:
- a concentração da produção e de capital alcançou um nível tão alto que criou monopólios que têm papel decisivo na vida econômica;
- a fusão do capital bancário com o capital industrial e, com isso, a criação do “capital financeiro”, isto é, de uma oligarquia financeira;
- a exportação de capital (que é diferente da exportação de mercadorias) adquire uma importância excepcional;
- a formação de associações capitalistas monopolistas internacionais que compartilham o mundo entre si;
- a divisão territorial do mundo entre as principais potências capitalistas se completou.
Afirmar isso é importante porque, diferentemente dos reformistas e outros na esquerda, nós consideramos as dimensões econômicas do imperialismo e não o reduzimos à dimensão militar. Esta análise equilibrada do imperialismo é importante para compreendermos processos geopolíticos e para criarmos um programa correto quanto as guerras e os conflitos.
Quando comparamos a Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética no século XX com os conflitos atuais, é possível encontrar similaridades, mas também há diferenças importantes. Nenhuma comparação é perfeita, mas fazemos isso para destacar similaridades.
Talvez a similaridade mais importante é a de que, tal como no passado, hoje a maior parte dos conflitos interimperialistas não são enfrentados em um plano militar, mas sim em um plano econômico e comercial (por exemplo, a guerra comercial entre EUA e China ou os diversos conflitos econômicos no interior da União Europeia). Quando os conflitos abertos, as guerras “quentes”, ocorrem, acontecem principalmente como guerras por procuração, tal como está ocorrendo no Iêmen, na Síria e em outras partes do mundo.
Por outro lado, uma diferença fundamental é que a principal guerra fria de hoje ocorre entre duas potências imperialistas, China e EUA, enquanto no passado a União Soviética não era um país imperialista ou mesmo capitalista. No documento de Perspectivas Mundiais aprovado no congresso da Alternativa Socialista Internacional em janeiro de 2020, afirmamos: “aanalogia com a histórica Guerra Fria entre o imperialismo estadunidense e o stalinismo deveria servir para esclarecer melhor o que é fundamentalmente diferente nos processos de hoje: não se trata hoje de um conflito entre sistemas sociais mutuamente exclusivos. Essa constatação tem repercussões importantes na dinâmica e nas perspectivas deste processo, assim como em nosso programa”.
Outra diferença importante de se mencionar é a de que nos conflitos de hoje os diferentes blocos não são tão definidos tal como eram durante a Guerra Fria do século XX. Naquele momento, o principal conflito se dava entre dois blocos que mantinham “seus” aliados sob controle. Por outro lado, hoje, apesar de existirem duas potências principais, EUA e China, também existem outras nações imperialistas que possuem interesses parcialmente conflitivos em suas regiões e também em nível internacional. Contudo, apesar da existência deste traço mais “bagunçado” dos conflitos interimperialistas de hoje, não vemos uma tendência ao desenvolvimento de blocos mais explicitamente diferenciados.
Em 1991, George Bush pai declarou a “Nova Ordem Mundial”. Após o colapso dos estados stalinistas. Pareceu por um momento que os EUA seriam a única superpotência mundial e fariam o que bem entendessem.
China – EUA
Hoje, o principal conflito se dá entre duas superpotências econômicas e militares, China e EUA. Inclui conflitos comerciais, mas também houve novos acordos comerciais assinados pelas duas superpotências. De forma geral, é possível afirmar que os diferentes conflitos comerciais têm gradativamente se intensificado no último período. O Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, não só declarou que o Partido Comunista Chinês é a ameaça número um à segurança dos EUA, mas também anunciou que seriam realizadas mais operações militares dos EUA para fazer a atividade marinha da China se reduzir no Mar ao Sul da China.
O conflito fundamental é uma disputa sobre qual é a superpotência número um, especificamente em uma economia mundial que está em retração. Os dados econômicos mais recentes da China provavelmente deixaram Trump e os capitalistas dos EUA ainda mais nervosos.
Enquanto os EUA ainda não alcançaram o pico da pandemia de Coronavírus, a economia da China parece ter voltado a crescer, ainda que, sem dúvida alguma, os dados apresentados pelo regime são exagerados. Por exemplo, em junho as exportações chinesas aumentaram se comparadas com junho de 2019 – em um momento em que os EUA ainda temem realizar novas quarentenas!
Porém, o conflito não se trata somente de redistribuir mercados e recursos, é também por posicionamento estratégico na esfera geopolítica mais ampla, ou, colocando nas palavras de Lenin: “faz parte da própria essência do imperialismo a rivalidade de várias grandes potências nas suas aspirações à hegemonia, isto é, a apoderarem-se de territórios não tanto diretamente para si, como para enfraquecer o adversário e minar a sua hegemonia”[1].
Um pilar importante da geopolítica chinesa é a Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR, também conhecida como “Nova rota da seda”) que foi anunciada em 2013 pelo presidente Xi Jinping. Desde o início, ela contribuiu para ampliar a influência da China em muitas partes do mundo. A ICR envolve 138 países e até a Itália e a Grécia ingressaram nela. Na América Latina, 14 de 20 países são parte da ICR. Na África, participam 40 de 55 países. Isto inclui a presença militar – a China já é a segunda maior negociante de armas na África e está ampliando sua presença física por meio de missões da ONU. Este processo é profundamente preocupante para as outras potências imperialistas, especialmente os EUA.
Cerrando fileiras
Neste momento, parece que diversos países imperialistas, em especial os EUA, estão tentando combinar um unilateralismo e uma concentração nas políticas domésticas e nas economias nacionais com tentativas de aproximação com outras potências imperialistas contra a China.
Uma abordagem de tipo “nós contra eles” é difícil para países como a Austrália ou a Índia, pois ambos possuem fortes laços econômicos com a China, ainda que cada vez mais se inclinem para os EUA nos campos político e militar.
A tendência para a formação de blocos mais explícitos se refletem nos conflitos recentes nas fronteiras da China com a Índia na região do Himalaia. A disputa já se arrasta há algum tempo; ambos os lados estiveram construindo projetos de infraestrutura na “Linha de Controle Real”, a qual serve fundamentalmente para fins militares. O contexto mais amplo é que tanto a Índia quanto a China estão tentando ampliar suas influências na região.
É importante destacar isso, pois existem setores que buscam apoio no regime chinês ou no regime indiano para defender o direito à autodeterminação de pequenas nações como Butão, Cachemira ou Tibet. Porém, os direitos dessas nacionalidades não passam de peças de xadrez em jogos geopolíticos de potências maiores.
Recentemente, a China ampliou os seus esforços agressivos para entrar nos mercados indianos, o que a Índia tentou impedir. Para proteger seus mercados, a Índia tem se inclinado, cada vez mais, para os EUA. Em sua competição com a China, a classe dominante indiana tem se esforçado para atrair empresas manufatureiras dos EUA e, assim, se beneficiar com o conflito econômico entre os EUA e a China, pois isto significa a realocação de investimentos financeiros e cadeias de fornecimento.
O Primeiro Ministro Indiano, Modi, apoia o chamado de Trump por uma “investigação” sobre o papel da China na crise do Coronavírus. A Índia, por ser um contrapeso contra a China, é de importância central para a estratégia Indo-Pacífica de Trump. Se consideramos o Paquistão, a situação na região fica ainda mais complicada, pois o país está em conflito com os EUA e a Índia e possui uma aliança econômica com a China.
Alianças instáveis
A Rússia é outro fator para se considerar. O país, tal como a Índia, não só divide fronteiras com a China, mas é, também, uma potência nuclear e um protagonista global importante com interesses próprios. Existem conflitos entre a Rússia e os EUA no Oriente Médio, envolvendo a Síria e o Irã, mas também mais próximos dos EUA, envolvendo Venezuela, Cuba e Nicarágua.
Mais uma vez, não existem quaisquer diferenças ideológicas importantes entre Trump e Putin; pelo contrário, ambos são nacionalistas reacionários. Este paralelo não se reduz ao caso dos EUA e da Rússia, pois em muitos dos grandes países imperialistas existem nacionalistas reacionários no poder. Este é um reflexo da necessidade do capital nacional em cada país recorrer a um caminho mais protecionista em “seus” governos, dada a situação da economia mundial.
Em geral, podemos ver uma tendência para um desenvolvimento crescente de blocos de poder, algo que, por exemplo, é visto no apoio da administração de Trump à política agressiva do governo de Netanyahu.
Porém, ao mesmo tempo, países imperialistas como Alemanha, Rússia e outros, também possuem interesses próprios. Isto se reflete nos sérios conflitos no interior da União Europeia que envolvem negociações intermináveis sobre pacotes de resgate econômico que estão em curso há meses.
A Alemanha, a potência imperialista mais poderosa na Europa, quer manter e ampliar seu domínio na União Europeia em favor de seus próprios interesses, mas todos os países europeus – independentemente da intensidade da força de seus interesses em relação à União Europeia – possuem, ao mesmo tempo, interesses conflitivos quanto as alianças, os acordos econômicos e a influência sobre outros países e regiões.
A Alemanha possui fortes relações econômicas com China, EUA e Rússia e tenta se equilibrar entre esses países enquanto defende interesses próprios nos Bálcãs e na Europa Oriental.
Assim, pode-se afirmar que apesar de existir uma tendência para uma diferenciação entre os blocos de poder, estes são, por outro lado, fragilizados pela existência de interesses conflitivos em seu interior. Tais conflitos internos podem ficar ainda mais sérios com a piora da crise econômica e com o protecionismo em diferentes níveis se tornando um traço dominante no próximo período.
Em outras palavras, tal como colocamos em nossa resolução do Congresso Mundial de 2020: “Embora a Guerra Fria histórica tenha mantido sob controle as rivalidades interimperialistas dentro do mundo capitalista (‘primeiro mundo’), isso não se dará dessa vez, sobretudo numa época em que qualquer aliança imperialista é drasticamente abalada e rompida por crescentes pressões nacionais centrífugas. Assim, nesta ‘nova guerra fria’ entre os dois Estados imperialistas mais poderosos, outras rivalidades imperialistas – Rússia, União Europeia, Índia e Japão – têm emergido e irão fazê-lo ainda mais, muitas vezes, de forma ‘mais independente’ para reafirmar seus interesses”.
Esses conflitos não refletem apenas pressões econômicas, mas também pressões políticas. As elites dominantes na Europa estão buscando uma forma de taxar empresas digitais, primeiro porque existe uma forte pressão pública em favor disso e, em segundo lugar, porque uma maior arrecadação tributária é desesperadamente necessária para financiar medidas contra a crise. As negociações em torno do tema foram impedidas pelos EUA.
As demandas e os limites do capitalismo que influenciam e se manifestam nos interesses nacionais conflitivos anteriormente citados impedem o surgimento de medidas importantes para combater a crise econômica e a crise da Covid-19. A ineficácia do capitalismo ficou brutalmente aparente com a proteção médica, os medicamentos e uma possível vacina contra o Coronavírus – fronteiras foram fechadas, máscaras e respiradores mecânicos impedidos de circular e países isolados e a União Europeia tentaram negociar acordos especiais com companhias farmacêuticas privadas.
O que virá?
Estes conflitos e tensões se dão enquanto o mundo ingressa na mais profunda crise econômica dos últimos 100 anos. Neste momento, ainda não sabemos como a crise do Covid-19 se desdobrará, qual será a intensidade da primeira onda de pandemia na América do Sul e na África e se uma segunda ou mesmo terceira onda aparecerá. Os efeitos sociais e econômicos de tudo isso são inimagináveis.
É esperada uma segunda onda de demissões entre agosto e setembro. No momento, 25% da população que ainda está empregada em países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é paga por meio de subsídios estatais. Em alguns países, como a França (55%) ou a Itália (45%), a proporção é ainda maior. A pobreza aumenta dramaticamente. A ONU estima que mais de 50% de todos os empregos na África podem desaparecer por causa da crise e o Programa Alimentar Mundial da ONU advertiu que o número de pessoas que enfrentam insuficiência aguda de alimentos duplicará, alcançando 265 milhões de pessoas até o fim de 2020 (ainda que existam alimentos suficiente para todos!).
Uma solução internacional
Todos os problemas globais que enfrentamos – crise ambiental, crise pandêmica, crise econômica mundial, crise de pobreza – exigem uma solução internacional. Os meios materiais para tal solução internacional já existem. Por exemplo, é possível enfrentar a escassez de alimentos e a fome, pois mundialmente um bilhão de pessoas trabalham ou estão empregadas no setor de produção alimentícias – e se elas pudessem organizar e dirigir o setor, ninguém teria que passar fome.
Ou, tal como Lenin afirma: “O capitalismo, na sua fase imperialista, conduz à socialização integral da produção nos seus mais variados aspectos; arrasta, por assim dizer, os capitalistas, contra sua vontade e sem que disso tenham consciência, para um novo regime social, de transição entre a absoluta liberdade de concorrência e a socialização completa”[2].
Mas ao mesmo tempo em que os meios tecnológicos e materiais para uma planificação internacional que beneficie a humanidade já existem, as classes dominantes atuam na direção oposta: elas recuam para o Estado-nacional e promovem o nacionalismo.
Uma corrida entre os países para reabrir a economia nacional o mais rápido possível está ocorrendo e isto se refletirá em batalhas ferozes entre diferentes economias nacionais. Para garantir essa abertura, as classes dominantes estão preparadas para colocar em risco as vidas das pessoas da classe trabalhadora e isto terá um efeito na consciência das pessoas.
Instituições em crise
As tensões interimperialistas também se refletem na crise das instituições: Trump retirou os EUA da Organização Mundial da Saúde, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) ficará sem uma liderança oficial até pelo menos o final deste ano; está ocorrendo um debate sobre a saída dos EUA da Organização Mundial do Comércio e a União Europeia enfrenta uma profunda crise.
Lenin explicou que no imperialismo há o desenvolvimento de uma oligarquia financeira com interesses próprios e podemos ver isso neste momento: a profunda crise da dívida na Argentina fez com que o Fundo Monetário Internacional (FMI) – conhecido pela brutalidade de seus Programas de Ajuste Estrutural – pressionasse “fundos abutre” privados a realizarem concessões com a finalidade de evitar um colapso na Argentina, o que poderia ter consequências políticas e econômicas devastadores.
A Conferência Anual de Desenvolvimento Econômico do Banco Mundial recebeu o título “Inquietação Global”, o que reflete o crescente temor das classes dominantes – e a existência de uma profunda crise do sistema capitalista.
A crise institucional do sistema capitalista está associada com o crescimento das tensões interimperialistas e o surgimento de políticas nacionalistas. Portanto, é nossa tarefa enfatizar que o fortalecimento de políticas nacionalistas estão em contradição com às demandas do povo da classe trabalhadora. Sabemos que os sucessos eleitorais de nacionalistas como Putin, Trump ou Bolsonaro não são mero reflexo de um nacionalismo crescente no interior da classe trabalhadora.
Uma pesquisa de opinião realizada pelo Conselho Europeu de Relações Exteriores revela duas coisas importantes. Em primeiro lugar, que, como resultado da pandemia de Covid-19, a maioria da população é favorável a uma cooperação mais intensa na Europa. Por exemplo, o apoio para esta cooperação em Portugal e Espanha é de, respectivamente, 91% e 80%. Em segundo lugar, a incapacidade da União Europeia de oferecer uma liderança decisiva na crise da Covid-19 é vista muito criticamente. Tais resultados indicam que existe uma consciência internacionalista subjacente nas classes trabalhadoras e isto é especialmente forte entre as gerações mais jovens.
Este internacionalismo pode ser identificado, também, em grandes movimentos sociais recentes, como os movimentos ambientalistas, feministas e o “Vidas Negras Importam”, assim como em diversos levantes sociais em que as massas revoltosas expressaram solidariedade com outros países: tal como foi no Iraque com manifestantes se solidarizando com o povo iraniano ou na França com os Coletes Amarelos apoiando as lutas no Chile.
Tal internacionalismo contrasta com o crescente nacionalismo das elites dominantes e alimenta esperanças para lutas futuras e movimentos contra a guerra. Porém, tudo isso, obviamente, pode mudar: respostas reacionárias e derrotas de movimentos sociais podem ameaçar a tendência internacionalista.
Nós devemos tentar dar o nosso melhor para promover esta disposição internacionalista e trazer pessoas para nossas fileiras, pois organizações internacionalistas como a nossa e lutas internacionalistas são as melhores armas para combater o nacionalismo.
Corrida armamentista
A crise institucional não é o único resultado do crescimento das tensões interimperialistas. Também é possível identificar uma escalada na corrida armamentista entre os principais países imperialistas. De acordo com o Instituto de Pesquisa sobre a Paz Internacional de Estocolmo, as despesas militares globais em 2019 tiveram o seu maior crescimento anual em um período de 10 anos, alcançando o valor de US$1,917 trilhão.
De longe, o país que mais gasta é os EUA: suas despesas militares cresceram em 5,3%, alcançando US$732 bilhões em 2019, isto é, o mesmo que 38% de toda a despesa militar no mundo.
Depois dos EUA, a China e a Índia são, respectivamente, o segundo e o terceiro países que mais gastam. A despesa militar da China alcançou US$261 bilhões em 2019, um crescimento de 5,1% em relação a 2018; enquanto a despesa da Índia cresceu em 6,8%, isto é, para US$71,1 bilhões. A Rússia foi o quarto país que mais gastou com despesas militares no mundo, elevando seus gastos em 4,5% em 2019.
Também houve um crescimento agudo nas despesas militares entre os estados membros da OTAN, especialmente na Europa Central. Por exemplo, as despesas militares da Alemanha se elevaram em 10%, para US$49,3 bilhões – foi o maior crescimento nas despesas militares entre os 15 países que mais gastaram em 2019. O total das despesas militares dos 29 países que participam da OTAN foi de US$1,035 trilhão em 2019 – foi um aumento de 11% em relação a 2018 (quando foram gastos US$931 bilhões). Não menos importante para este desdobramento foi a pressão de Trump para que os países da OTAN elevem suas despesas militares.
A escalada na corrida armamentista é parte da consolidação de blocos de poder. Recentemente, o Secretário Geral da OTAN, Stoltenberg, afirmou explicitamente que “a OTAN não é apenas uma aliança militar, mas acima de tudo uma aliança política”. Em 2019, a OTAN definiu a China como uma ameaça, expressando o medo das potências ocidentais perderem sua supremacia tecnológica. Assim, apesar das afirmações de Stoltenberg de que a OTAN busca “evitar uma corrida armamentista”, a realidade mostra o contrário.
Em complemento ao crescimento nas despesas militares, os tratados militares internacionais estão sendo desmantelados. Neste ano, os EUA deixaram de participar do “Tratado de Céus Abertos”, que conta com a participação de 34 países e serve para ampliar a transparência quanto a atividades militares que utilizam vigilância aérea desarmada nos territórios dos participantes do tratado. Além disso, em fevereiro de 2021, o último dos grandes tratados nucleares com a Rússia (Tratado pela Redução Estratégica de Armas) terminará e os EUA não manifestaram interesse em renová-lo. É claro que a motivação da Rússia em conseguir renovar o tratado não é um sinal do amor de Putin pela paz, mas é resultado das dificuldades econômicas da Rússia e de seus gastos militares já elevados, que abarcam 3,9% do PIB do país.
A elevação das despesas militares e a fragilização de tratados militares certamente aumentam o risco de guerras quentes. Ainda que a ameaça de uma Terceira Guerra Mundial não seja algo iminente ou mesmo plausível no futuro, certamente ocorrerão conflitos militares e guerras por procuração em diferentes regiões. Também precisamos considerar que há processos cuja dinâmica pode escapar ao controle!
Em diversas regiões, é mais provável o surgimento de uma série duradoura de conflitos menores. Por exemplo, no Oriente Médio, envolvendo Israel-Palestina, Irã, Síria e Turquia. É óbvio que o brandir de armas entre China e os EUA está se intensificando – as últimas operações navais dos EUA no Mar do Sul da China ilustram isso. Porém, um conflito militar direto entre as duas superpotências ainda é muito improvável.
De que lado estamos
Protestos e movimentos em torno do tema da guerra e da crescente militarização surgirão, assim como em torno da questão dos direitos democráticos. Isto normalmente vem à tona em situações de crise e guerra, pois elas potencializam os elementos mais reacionários no interior das classes dominantes. Muitas guerras e diversos conflitos militares produziram uma acelerada e ampla politização das massas – a Guerra do Vietnã e a invasão do Iraque em 2003 são bons exemplos disso.
É claro que nosso trabalho é diferente nas regiões e nos países que estão diretamente envolvidos em situações de guerra, tal como Israel-Palestina ou os EUA, e naquelas partes em que existem grandes comunidades que vieram de zonas de guerra, tal como a diáspora curda que existe na Alemanha e os diversos grupos de refugiados.
Quando a questão da guerra se torna mais proeminente, nós precisamos enfrentar as várias formas de propaganda que aparecem. “Defender a pátria” é um dos argumentos que nossos companheiros em Israel-Palestina precisam, frequentemente, enfrentar. Em outras seções, a propaganda que afirma defender a “democracia”, os “valores ocidentais” ou, até mesmo, os “direitos das mulheres” – estes argumentos foram mobilizados por Bush para bombardear o Afeganistão – é algo mais frequente.
Obviamente, nós não nos posicionamos ao lado de qualquer potência imperialista. Tal como Leon Trotsky escreveu em 1939: “quando a guerra é impulsionada por ambos os campos imperialistas, não é pela defesa da pátria ou da democracia, mas pela redivisão do mundo e a escravidão colonial, um socialista não tem o direito de preferir entre um grupo de bandidos ao invés do outro”. Da mesma forma, Karl Liebknecht escreveu em um panfleto contra a I Guerra Mundial em 1915: “O principal inimigo está em nossa casa!” – isto é, era o governo alemão e a liderança militar.
Dependendo da consciência da classe trabalhadora e da juventude, podemos não repetir esta formulação exata e precisamos analisar o papel imperialista de cada governo imperialista e passar para exemplos concretos.
Por exemplo, uma palavra de ordem comum na Alemanha é “Deutsche Waffen, deutschesGeld, mordenmit in allerWelt”(“Armas alemãs, dinheiro alemão, matam por todo o mundo”).A venda de armas alemãs tornou-se um tópico político de destaque em relação ao brutal programa de austeridade da Troika da União Europeia na Grécia e em outros países do sul da Europa.
A classe trabalhadora
Em movimentos futuros a questão será sobre como parar ou impedir uma guerra. E quem tem o poder para fazer isso? Muitas pessoas têm esperanças na ONU. É verdade que instituições internacionais como a ONU se enfraquecem quando países, como os EUA, se retiram de seus organismos, mas é perigoso criar ilusões em tais instituições. Muitos pensam que se Trump odeia tais instituições, então devemos defende-las, especialmente quando setores progressistas das classes dominantes ou organizações reformistas tentam defender as instituições internacionais citadas e a atuação delas.
Precisamente por isto, é preciso relembrar que a ONU não passou de ferramenta imperialista na Guerra da Coreia, na Guerra dos Balcãs e em outros conflitos. Portanto, precisamos apontar que, apesar de existirem pessoas honestas em tais organizações internacionais (como Jean Ziegler), elas são, em última instância, instrumentos do imperialismo e, portanto, associadas e responsáveis pela exploração ecológica e econômica em nosso mundo.
A nossa defesa da necessidade da cooperação e de organizações internacionais deve ser desde a perspectiva da classe trabalhadora, deixando explícito que precisamos de organizações internacionais da, pela e para a classe trabalhadora.
A classe trabalhadora é a que mais sofre no sistema atual e é também a única força que pode liderar a luta por um mundo verdadeiramente pacífico ao eliminar as bases de guerras e conflitos intermináveis, isto é, o capitalismo e o imperialismo.
Uma demanda muito importante que deve ser defendida é o cancelamento das dívidas, especialmente nos países neocoloniais. A crise de Covid-19 e a crise econômica mundial aumentaram, ainda mais, as dívidas. Isto significa que os países neocoloniais estão ainda mais sob o controle de países imperialistas.
Com o crescimento das tensões interimperialistas e a retração econômica, veremos esforços mais agressivos que buscam ampliar a influência e acessar os mercados nos países neocoloniais.
Tais desdobramentos não apenas ampliam o risco de guerras interimperialistas, especialmente por meio de guerras por procuração, mas ampliam também a resistência por parte de classes dominantes locais cada vez mais confiantes em países neocoloniais afetados pelas guerras.
Portanto, poderemos ver elementos anti-imperialistas em lutas de países na África, Ásia, América Central e América do Sul. Em tais países e lutas é de especial importância enfatizar o papel da classe trabalhadora.
Os eventos recentes em países como Sudão, Iraque e Irã demonstram que é a classe trabalhadora que se organiza e luta, mesmo em situações em que o resto da sociedade decidiu capitular.
Isto é congruente com a teoria da revolução permanente de Trotsky, a qual responde à questão de qual é a força que pode superar situações de guerra e de exploração global e, especialmente, em países neocoloniais.
Mas se a classe trabalhadora possui esta força, os sindicatos estão deixando-a na mão. Apesar de alguns sindicatos poderem até soltar declarações em defesa da paz durante uma guerra ou em uma situação de guerra fria, normalmente os socialistas conflitam com a burocracia sindical em ações concretas. Muitos sindicatos adotam, por exemplo, no caso da indústria armamentista, argumentos como “unidade nacional” ou “salvar nossos empregos”.
Armas de empresas austríacas foram encontradas na guerra da Síria, ainda que o status legal internacional da Áustria como país permanentemente neutro proíba a venda de armas para países em guerra. Isto mostra que a demanda por “neutralidade” é inútil.
A seção austríaca da ASI, o Partido de Esquerda Socialista, apresenta as seguintes demandas básicas:
- Que os livros das empresas de petróleo e armas que comercializam com as diversas partes envolvidas na guerra sejam abertos e auditados por representantes da classe trabalhadora e organizações de refugiados.
- Que o dinheiro das empresas não seja usado apenas para financiar políticas para os refugiados na Áustria, mas também para reconstruir a Síria.
Porém, precisamos ir além disso. Precisamos desenvolver um programa transicional para quem trabalha na indústria armamentista, assim como precisamos, como parte da luta contra a crise climática, de um programa para quem trabalha nos setores intensivos em carbono.
Construir já!
O desenvolvimento da crise econômica mundial e o crescimento das tensões interimperialistas certamente produzirão muitas situações difíceis e complexas para socialistas e para a classe trabalhadora. Porém, não podemos esquecer que as classes dominantes temem por seu próprio futuro e que muitos dos passos que elas estão tomando não são sinais de suas forças, mas de suas fragilidades.
Uma guerra, seja fria ou “quente”, carrega em si elementos de revolução. Não se trata de um efeito mecânico automático, mas como as guerras refletem a situação desesperada em que está o sistema capitalista; as classes dominantes estão divididas e buscam saídas. Além disso, a classe trabalhadora sempre se cansa rapidamente de uma situação de guerra, mesmo quando no início pode prestar apoio a uma guerra.
Considerando tudo isso, é equilibrado afirmar que hoje há elementos de situações pré-revolucionárias, os quais também são percebidos pelos setores mais inteligentes e consequentes das classes dominantes. Este medo da revolução é uma motivação central por trás das tentativas das classes dominantes limitarem os efeitos da atual catástrofe social. Um exemplo ilustrativo disto é a carta aberta publicada por um grupo de bilionários e milionários em janeiro de 2020 com o título “Milionários contra as forquilhas”, na qual eles defendem taxar os super-ricos para prevenir levantes e caos social. Nós devemos ter consciência de nossa responsabilidade, precisamos ter confiança na capacidade da classe trabalhadora e precisamos construir nossas próprias forças. Assim, podemos evitar que a guerra fria se transforme em uma guerra quente ao impulsionarmos uma guerra de classes pelo fim de um sistema capitalista apodrecido.
[1]Ver: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap7.htm
[2]https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap1.htm