Keynesianismo e a crise do capitalismo

A atual crise econômica pode ter sido disparada pela pandemia do novo coronavírus, mas suas origens estão em uma crise mais profunda do capitalismo que vem desde o crash financeiro de 2008-9. Esta crise em curso revela a falência do capitalismo em geral, e a desregulamentação dos mercados no capitalismo neoliberal em particular. Para a classe trabalhadora, essa crise aponta mais fortemente para a necessidade de uma mudança socialista. Para a classe dominante, a crise forçou uma intervenção na economia que contradiz completamente a ortodoxia do “livre mercado”. Isto inclui medidas – geralmente conhecidas como “keynesianas” – para sustentar a demanda, colocando dinheiro diretamente no bolso dos trabalhadores.

A adoção de medidas keynesianas se mostraram explícitas no dia 3 de abril, quando o editorial do Financial Times, um tradicional defensor de políticas neoliberais, fez um chamado por “reformas radicais” na esteira da pandemia do coronavírus: “Governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia. Deverão tratar os serviços públicos como investimentos, não como gastos, e encontrar maneiras de tornar o mercado de trabalho menos inseguro. Redistribuição estará novamente na agenda; os privilégios dos mais velhos e dos mais ricos em questão. Políticas até há pouco consideradas excêntricas, como renda básica universal e taxação de fortunas, terão que fazer parte.”

No último período da crise houve uma virada mais séria na direção de uma intervenção estatal do que havia ocorrido em 2008-9. Em algumas semanas o estímulo econômico do governo dos EUA, aprovado pelo congresso, ultrapassou 10% do PIB. Em comparação, o plano de resgate econômico de 2008 demorou meses para ser aprovado e era “apenas” equivalente a 5% do PIB. Obviamente a esmagadora maioria desse “estímulo” é um resgate aos bancos e grandes empresas dos EUA. Como já discutimos anteriormente, a crise revelou como as empresas se afundaram em dívidas após o resgate econômico dez anos atrás. Isto é um exemplo de uma fraqueza que ameaça criar uma crise financeira de proporções bíblicas. Contudo, a quarentena em primeiro lugar cortou drasticamente o consumo, e os capitalistas que demitiram milhões de trabalhadores agora esperam que o governo compense a queda da demanda com estímulos econômicos e expansão de benefícios aos desempregados.

Este tipo de medida não está sendo tomada apenas nos EUA. Na Grã-Bretanha o governo conservador de Boris Johnson implementou um programa que concede aos trabalhadores um auxílio equivalente a 80% de sua renda a todos os salários até 25 mil libras. O Banco Central Europeu removeu os limites de gastos dos estados-membros da UE.

Por que os governos, incluindo os que até ontem estavam impondo drásticas medidas de austeridade, repentinamente estão dando dinheiro aos trabalhadores, e para onde apontam essas medidas? Os estímulos econômicos serão capazes de parar a crise? Para essa reviravolta fazer sentido, os socialistas precisam entender o que é o keynesianismo. Embora geralmente seja visto como sinônimo do New Deal dos anos 30, o keynesianismo não significa bem-estar social, mas representa uma visão de mundo com uma compreensão específica sobre o funcionamento da economia capitalista.

O que é o keynesianismo?

Keynesianismo é uma escola do pensamento econômico burguês que vê a economia capitalista como a soma de todas as despesas, divididas em 4 setores: consumo, gastos públicos, investimento empresarial e balança comercial. Uma crise econômica é percebida quando um destes setores se recusa a gastar, e a solução se dá no aumento dos gastos de um outro setor. Para prevenir as crises o governo pode ajustar uma variedade de alavancas econômicas, como reduzir as taxas de juros para incentivar os gastos ou intervir diretamente nos gastos fiscais. Os keynesianos caracterizariam a atual crise como um declínio na produção com “declínios no investimento das empresas e no consumo autônomo”, e com o setor de exportação incapaz de compensar, tornando o estímulo do governo a solução.

A intenção dessas medidas não é ajudar os trabalhadores, mas salvar as empresas primeiramente. Como Keynes disse em 1931, “Se nosso objetivo é remediar o desemprego, é óbvio que precisamos, antes de tudo, tornar os negócios mais rentáveis”. Embora os recentes auxílios do governo sejam a salvação para os trabalhadores poderem pagar seus aluguéis e custear suas necessidades básicas, mesmo que isso não seja suficiente, este não é o principal objetivo da classe dominante. A emissão de auxílio financeiro pelo governo é para que os trabalhadores possam consumir e assim retornar esse dinheiro às empresas. Mas ao mesmo tempo, governos com déficits gigantescos estão preparando um corte massivo nas áreas sociais. As medidas de estímulo serão temporárias, e a classe dominante irá buscar todos os meios de despejar os custos da crise nas costas da classe trabalhadora.

O economista britânico John Maynard Keynes desenvolveu esta sua tese durante a Grande Depressão de 1929. Dado que as teorias econômicas ortodoxas predominantes na época foram incapazes de explicar a crise ou apontar políticas para solucioná-la, a classe dominante adotou pragmaticamente o keynesianismo como uma saída. Roosevelt, que defendeu cortes no orçamento na campanha presidencial de 1932, foi forçado a mudar sua linha e implementar o New Deal em 1933 para promover o emprego a milhões de trabalhadores, embora com salários de fome. Iniciando em 1934, os capitalistas também foram confrontados com uma onda histórica de greves que levaram milhões de operários industriais a sindicalizar-se. Para proteger seu sistema do movimento dos trabalhadores, os capitalistas fizeram concessões.

Contudo o New Deal falhou em entregar ao país uma recuperação econômica sustentada e o país caiu em nova recessão em 1937-38. Foi necessário uma injeção de investimento estatal na indústria bélica, combinada com a destruição massiva de capital na Segunda Guerra Mundial para criar um terreno fértil para investimentos rentáveis, o que permitiu ao capitalismo uma recuperação.

Keynesianismo estrutural

Após a guerra, as classes dominantes, particularmente na Europa Ocidental, e em menor grau nos EUA, foram politicamente forçadas a adotar um “keynesianismo estrutural”, o que levou à criação de um extensivo estado de bem-estar social. Os milhões de trabalhadores convocados à guerra que retornaram, tendo sobrevivido à Grande Depressão e aos horrores da Segunda Guerra Mundial, deixaram claro aos seus governos que as condições não poderiam retornar ao que eram anteriormente. Na Europa, o establishment político capitalista, enfrentando economias em colapso e sem credibilidade por causa de sua colaboração com o fascismo, teve que oferecer uma alternativa à ameaça política representada pela União Soviética.

O keynesianismo também desempenhou um papel fundamental na economia mundial através do sistema de Bretton Woods, uma ordem monetária internacional com forte regulamentação, que se inicia no fim da Segunda Guerra e dura até 1971. Fundamentalmente, todas as moedas internacionais vincularam-se ao dólarestadunidense (uma medida que Keynes, um dos coautores de Bretton Woods e um economista nacionalista, lutou amargamente contra – ele queria conectar o mercado mundial à Grã-Bretanha). Isto serviria para controlar a inflação e as taxas de juros dos países membros para ajudar em um crescimento econômico internacional, ao custo de certa perda de autonomia monetária por parte dos bancos centrais nacionais.

Com pronta aceitação internacional da intervenção estatal no contexto da necessidade de reconstruir economias arruinadas, os keynesianos puderam implementar “políticas industriais” em um número de nações mais avançadas, que incentivaram o desenvolvimento de suas indústrias nacionais com elementos de planificação estatal. Embora certamente radical para os padrões atuais, o objetivo dessas medidas foi antes de tudo ajudar a reiniciar a máquina de lucros. De fato, utilizando de uma política industrial, gastos sociais massivos e organismos de comércio internacionais como alavancas econômicas, os keynesianos presidiram o maior crescimento econômico dos anos 50 aos 70. Parecia que o keynesianismo havia dominado o ciclo de crescimento seguido por crise.

Enquanto o ajuste de alavancas econômicas tinha efeito, os principais fatores materiais por trás do longo boom de crescimento foi a destruição de capital na Segunda Guerra, a dominação do imperialismo estadunidense, suprimindo rivalidades interimperialistas, rápido crescimento populacional, invenção de novas tecnologias produtivas e a entrada de mais força de trabalho feminina ao mercado de trabalho. A classe capitalista – que na maior parte do tempo luta com unhas e dentes contra o pagamento de impostos por gastos sociais ou restrições no uso e fluxo de capitais – pode tolerar ambos temporariamente numa era de expansão econômica sem precedentes.

O boom não foi sustentável. Nos últimos anos desta “Era de ouro do capitalismo” o crescimento da produtividade começou a desacelerar. O capitalismo possui inerente a si uma tendência de “superacumulação” (superprodução) de capital industrial ao introduzir mais maquinário na produção, o que aumenta as despesas gerais e aumenta a produção mais rapidamente do que a sociedade é capaz de absorver, reduzindo a lucratividade. O boom do pós-guerra mostrou essa tendência, e esse crescimento cada vez mais devagar terminou em 1973, quando os países capitalistas avançados sofreram um embargo de petróleo da OPEP, criando uma severa escassez de energia e provocando uma forte recessão. 

As políticas keynesianas não puderam responder a uma escassez significativa a partir de uma redução das taxas de juros. O resultado foi o crescimento da inflação. O forte gasto com a máquina de guerra imperialista estadunidense no Vietnã também provocou uma inflação excessiva, sem trazer nenhuma contrapartida à economia. Esta combinação de estagnação do crescimento e aumento da inflação – conhecido nos EUA como “stagflation” – trouxe descrédito para o keynesianismo junto à classe dominante, que abandonou o Bretton Woods, atacou os gastos sociais e virou-se para o neoliberalismo.

Apesar da dimensão da atual crise e do descrédito do modelo neoliberal, que reinou nos últimos 40 anos, não significa que a classe dominante pode ou irá retornar ao keynesianismo estrutural. As condições sociais necessárias, uma economia global em expansão e uma forte coordenação entre capitalismos nacionais, não estão mais presentes. O keynesianismo que vemos hoje se parecerá mais com as medidas adotadas nos anos 30, porque estamos caminhando para uma profunda depressão na economia mundial e para um aumento da rivalidade interimperialista, especialmente entre EUA e China. Claro, em face à pressão das massas ou à ameaça de uma revolução, a classe dominante poderia ainda fazer grandes concessões.

O problema é o neoliberalismo ou o capitalismo?

Desde a crise da década de 1970 a classe dominante mudou sua abordagem econômica do keynesianismo para o neoliberalismo, uma forma particularmente parasitária do capitalismo. Neoliberalismo, como ideologia, é definido por limitar a participação do estado na economia visando proteger os livres mercados e a propriedade privada. Na prática, o neoliberalismo se caracteriza pela privatização dos serviços públicos em larga escala, a abertura dos mercados internacionais ao livre comércio, a estabilização de moedas e dívidas e uma guerra encarniçada contra a classe trabalhadora. Se caracteriza também pelo crescimento do papel do capital financeiro e uma massiva expansão do crédito. Isso tudo representa um certo remédio para o problema da lucratividade, mas apenas através da acumulação de contradições que inevitavelmente explodiriam em um determinado estágio.

Defensores do keynesianismo, especialmente no campo da esquerda, pintam a ascensão do neoliberalismo como produto da ganância ou da ignorância. Este sentimento se fortaleceu desde 2008, quando o capitalismo neoliberal entrou em crise. Mas a classe dominante adotou o neoliberalismo como resposta à própria crise do keynesianismo nos anos 70, que assistiu a um declínio da lucratividade, estagnação econômica, inflação e falência de empresas, incapazes de encontrar investimentos lucrativos.

O neoliberalismo serviu para restaurar a lucratividade, através de uma forte atividade especulativa, atacando o setor estatal por meio de cortes na arrecadação de impostos e privatizações, enquanto aumentou massivamente a taxa de exploração dos trabalhadores, aumentando ritmo e jornada de trabalho e reduzindo salários. Nada disso impediu o declínio das taxas de produtividade, o que se reafirmou nos EUA após o ano 2000, e é um fator chave na atual crise.

Economistas neo-keynesianos, como Paul Krugman, veem a desregulamentação de mercados, bem como o sistema laissez-faire, que eram características chave do neoliberalismo, como fonte de crises, e não o sistema capitalista como um todo. Eles apontam para a mania de austeridade do establishment político, especialmente na Europa, depois de 2008-09, ao falhar em trazer a economia de volta à estabilidade duradoura.

Um sistema em declínio

Aqui temos que apontar uma diferença chave entre o marxismo e o keynesianismo. Os marxistas veem o capitalismo como um sistema em um longo declínio. Nos séculos 18 e 19 o desenvolvimento do capitalismo levou a uma expansão da atividade produtiva na humanidade sem precedentes na história. A Primeira Guerra Mundial foi uma expressão da impossível contradição entre o Estado-nação e o futuro desenvolvimento de uma economia mundial sob bases harmoniosas. O período entre guerras não assistiu a nenhuma resolução destas crises – foi marcado por estagnação e a sociedade oscilou a todo momento entre revolução e contrarrevolução. O boom econômico do pós-guerra foi uma fase excepcional. A queda na produtividade e a crise de lucratividade nos anos 70 foi o início da retomada de um declínio de longo prazo do capitalismo enquanto sistema social.

Os keynesianos acreditam que o sistema não está em declínio e pode ser consertado. Eles enxergam as crises como um “subconsumo”, a redução dos salários e do padrão de vida dos trabalhadores reduzem a demanda, impedindo as empresas de venderem seus produtos. Este processo, uma “crise de realização” na terminologia marxista, é certamente motivo de crises. Mas esta não é toda a história.

Durante uma desaceleração econômica, um dos setores da economia se recusa ou não é capaz de investir na produção. Isto leva a um declínio na produção e atividade econômica em geral, resultando numa queda no emprego e em um colapso nos padrões de vida da classe trabalhadora. As empresas encolhem de tamanho ou vão à falência, e a classe trabalhadora enfrenta a pobreza e o desemprego. Esta realidade forma a base das teorias keynesianas do subconsumo, onde os trabalhadores não estariam gastando o suficiente para tornar os negócios lucrativos. Se a intervenção do Estado pode estimular a demanda, os keynesianos argumentam, os investimentos terão retorno e a crise do capitalismo pode ser contornada.

Esta é uma visão unilateral das crises capitalistas. O keynesianismo enxerga superficialmente a economia como um ente contábil, como se resolvendo um número negativo em um setor simplesmente significasse adicionar um complemento a um outro setor. Ele não consegue explicar por que as empresas periodicamente se recusam a investir na produção de uma só vez. Os marxistas entendem que isto é porque o sistema capitalista como um todo é impulsionado por uma disputa encarniçada por lucro, as empresas geram excesso de produção de mercadorias e capital, resultando na saturação dos mercados.

Mesmo na recente recuperação econômica, as empresas viram cada vez menos retorno em investimentos na expansão da produção. Por exemplo, as empresas investiram pesadamente no cassino do mercado financeiro, inclusive em recompra de ações [quando uma empresa compra suas próprias ações no mercado]. Na atual crise vemos superprodução na forma como a Apple acumulou 200 bilhões de dólares em caixa em 2019, na incapacidade de encontrar investimentos lucrativos. Mais uma vez se aponta para a longa crise de crescimento da produtividade e a inabilidade do capitalismo de realmente expandir as forças produtivas como fez no passado, em particular durante o boom do pós-guerra. Se as empresas se recusaram a investir durante os recentes anos de “boom econômico”, porque a política keynesiana de dar a elas mais dinheiro durante os anos de crise as faria investir?

Tanto o neoliberalismo quanto o keynesianismo se desenvolveram em resposta a diferentes crises enfrentadas pelo capitalismo. E ambas falharam em estabilizar o capitalismo a longo prazo. Isto coloca a pergunta sobre o que pode ser feito para que consigamos sair da atual crise.

O keynesianismo pode resolver a crise?

Investimento público pode fomentar a demanda de forma limitada, e pode resolver certos aspectos conjunturais da crise do capitalismo. O New Deal proporcionou a criação de empregos e ajudou milhões de trabalhadores nos EUA. Hoje, diante do impacto imediato do lockdown devido ao novo coronavírus, um certo investimento público pode mitigar os piores aspectos da crise.

Mas isso só funciona dentro de certos limites. Novamente, o New Deal de Roosevelt só foi sustentável em um país capitalista avançado, com uma moeda forte como o dólar, e mesmo assim não pôde por si só tirar a economia de uma depressão. Só a destruição causada pela Segunda Guerra e outras condições, como explicamos, foi capaz de dar início ao boom do pós-guerra. Um problema óbvio para resolver a atual crise é que, diferente de uma guerra ou desastre natural, não existe hoje uma destruição de capitais que permita uma dinâmica de recuperação.

O que provavelmente veremos agora nos EUA é uma pragmática e relutante adoção de medidas keynesianas convivendo com uma austeridade cruel e possivelmente até privatizações. Ao mesmo tempo que o governo está enviando auxílio financeiro aos trabalhadores os estados ameaçam cortes massivos nos serviços sociais, e os Republicanos claramente apreciam a ideia da empresa de correios estatal entrar em falência.

A longo prazo o keynesianismo não é capaz de oferecer uma saída para a crise. Injetar trilhões de dólares na economia não resolverá a saturação dos mercados, que é o que desencoraja o investimento. O estímulo fiscal de 2,2 trilhões de dólares acalmou temporariamente o mercado financeiro, mas os economistas burgueses já abandonaram a tese fantasiosa de que haveria uma rápida recuperação e expansão econômica após essa crise.

A experiência recente do Japão com três décadas de políticas keynesianas é uma demonstração clara de sua inabilidade em resolver as crises capitalistas mais sérias. No início dos anos 90 a economia japonesa colapsou e o governo respondeu com um plano de obras públicas, redução da taxa de juros, dentre outras medidas keynesianas que se mantém até hoje, exceto por um período de austeridade no início dos anos 2000. Ao custo de acumular a maior relação dívida/PIB do mundo, as medidas keynesianas no Japão geraram um crescimento real do PIB de 1% ao ano nas últimas três décadas, intercalado com períodos curtos de recessão. O atual primeiro-ministro do Japão Shinzo Abe tem implementado seu próprio keynesianismo de direita chamado de “Abenomics”, que é um misto de desregulamentação e leis contra os trabalhadores, com subsídios às empresas. Essas medidas falharam completamente na tarefa de retomar um crescimento sustentado, ao invés disso deteriorou as relações de trabalho, gerando aumento de trabalhos precários e intermitentes. Crises sociais profundas ou uma renovação na luta de classes, que as medidas keynesianas de gastos sociais e de infraestrutura ajudaram a evitar, podem ressurgir sob as reformas direitistas de Abe.

Keynesianismo e socialismo

Para os socialistas, o crescimento da adoção de medidas keynesianas, mesmo por governos de direita, expõem a hipocrisia da classe dominante. Quando Bernie Sanders defendeu seu plano de universalização da saúde pública, o Medicare for All, ele foi confrontado constantemente por Biden e membros do establishment do partido democrata com a frase “como você vai pagar por isso?”. Mas quando o Federal Reserve, o Banco Central dos EUA, quer gastar parte de seu pacote de auxílio a empresas e estados de 2,3 trilhões de dólares com ações e títulos podres para sustentar o mercado financeiro ninguém pergunta como irão pagar por isso. Se podem achar dinheiro para salvar as grandes empresas por que não acham dinheiro para salvar o povo trabalhador?

Contudo, ao passo que as medidas keynesianas incluem auxílio às empresas, também incluem programas de bem-estar social. As ideias de Keynes vêm crescendo no interior da esquerda reformista, entre ativistas que genuinamente querem lutar ao lado dos interesses da classe trabalhadora. Alguns, como Bernie Sanders, veem as políticas keynesianas como um exemplo de “socialismo democrático”, apontando para o estado de bem-estar social nos países escandinavos, que também foram minado pelo neoliberalismo. Outros reconhecem que as políticas keynesianas não atacam o capitalismo, mas veem essas medidas como um avanço gradual ao socialismo, por meios pacíficos. De qualquer forma esses keynesianos de esquerda enxergam o capitalismo e suas crises sob a mesma ótica que Keynes as via, eles hoje culpam exclusivamente o neoliberalismo, ao invés do capitalismo em geral. Os marxistas revolucionários veem as coisas de forma diferente.

A lógica do capitalismo levará inevitavelmente a uma superprodução e superacumulação de capital, que por sua vez gera as crises. É um absurdo que uma sociedade com tanta riqueza possa gerar demissões e pobreza, mas o problema é que esta riqueza é criada pela classe trabalhadora e apropriada pelos capitalistas. Esta contradição de existirem trabalhadores desempregados rodeados de riqueza que eles próprios produziram é que os socialistas buscam resolver através de uma economia planificada. Se as grandes empresas forem estatizadas sob o controle dos trabalhadores e sob uma economia planificada, poderíamos redirecionar a economia para produzir bens para o uso e não para o lucro, evitando assim a superprodução. Se a produção precisar ser reduzida, uma economia socialista livre do lucro poderia simplesmente retreinar os trabalhadores ou reduzir sua jornada de trabalho para manter o pleno emprego sem redução salarial, isto pago com a tremenda produção de riquezas proporcionada pelas técnicas modernas de produção, e que está mantida hoje nas mãos de 1% da sociedade.

Keynesianismo fundamentalmente não é socialismo, mas uma tentativa de salvar o capitalismo dele próprio. E mesmo que fosse possível aplicar plenamente as medidas keynesianas de esquerda, ainda assim manteria o sistema capitalista intacto, mesmo que com mais regulamentação, serviços sociais e uma maior fatia de propriedade estatal. Esta não é uma crítica moralista ao keynesianismo por “não ser radical o bastante”. As reformas que beneficiam a classe trabalhadora também reduzem os lucros das grandes empresas, o que significa que elas estão sob constante ameaça de serem reduzidas ou revertidas no interesse da luta capitalista pelo lucro.

Quando Bernie Sanders levantou a necessidade do Medicare for All em um debate, Joe Biden respondeu apontando para a Itália, que possui um sistema de saúde universalizado, mas falhou na resposta à crise do coronavírus. A oposição de Biden ao Medicare for All é indefensável, mas a verdade é que desde 2001 a Itália destruiu seu sistema público de saúde, com o objetivo de transformá-lo em um lucrativo apêndice da rede privada. Precisamos lutar por reformas como o Medicare for All, mas também precisamos ir além, tomando e estatizando toda a indústria da saúde, e finalmente todas as grandes corporações e bancos que dominam a economia global.

Enquanto os marxistas rejeitam o reformismo, eles não rejeitam a luta por reformas. Marxistas revolucionários lutam por reformas como parte do que o revolucionário russo Leon Trotsky chamou de “programa de transição”. Isto implica construir uma ponte entre a consciência atual e o entendimento da necessidade da transformação socialista da sociedade. Lutamos por reformas que beneficiariam imediatamente a classe trabalhadora, como o aumento do salário mínimo, controle dos aluguéis, aumento dos impostos sobre as grandes empresas, mas também lutamos por demandas que vão além do capitalismo, como a estatização da indústria de energia e os grandes bancos sob controle democrático dos trabalhadores. Mas lutamos por estas reformas através da mobilização organizada da classe trabalhadora; não venceremos convencendo os capitalistas a adotarem truques monetários ou políticos.

Além disso, apontamos as limitações de qualquer reforma e a necessidade de ir além. Em nosso programa para a crise do coronavírus defendemos: “Adicional de risco” para trabalhadores das áreas essenciais; que todos os trabalhadores recebam seus salários completos caso percam o emprego por conta da pandemia ou da recessão econômica; congelamento de todos os aluguéis e hipotecas; um plano emergencial para abrigar os sem-teto; reaberturas de hospitais fechados; tomada pelo Estado de prédios vazios para estabelecimento de clínicas médicas gratuitas; treinamento e admissão em massa de equipes médicas; e estatização de empresas que se recusarem a adotar as medidas de proteção contra o vírus. Estas demandas fazem uma ponte entre uma resposta imediata à crise e a necessidade de estatizar a economia sob o controle e gestão dos trabalhadores.A única solução definitiva para a crise do capitalismo é através da estatização das 500 maiores empresas, com uma planificação racional e democrática da economia. A motivação do lucro precisa ser tirada de cena, para que as decisões democráticas dos trabalhadores e consumidores possa balancear gastos e receitas, de modo que a produção seja direcionada para as reais necessidades existentes. Através deste plano socialista poderemos alcançar um padrão de vida decente para todos, enfrentar as mudanças climáticas e acabar com as crises que o capitalismo enfrenta.

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